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A saúde indígena no Brasil: o grito silencioso por justiça, respeito e proteção

A questão da saúde indígena tem relação não apenas com a preservação dos povos originários, mas do meio ambiente e até da soberania nacional. Entenda.
09/08/2024 | 12h30

Em janeiro de 2023, o Brasil mal tinha se recuperado das fortes emoções da posse do presidente Lula e dos ataques terroristas em Brasília quando se deparou com imagens de crianças yanomamis definhando pela desnutrição grave, junto a notícias de uma epidemia de malária na Terra Yanomami, localizada entre os estados do Amazonas e Roraima, no norte do país.

Entre os fatores causadores da crise sanitária dos yanomamis está o garimpo ilegal na Amazônia, que polui os rios, contamina os peixes e prejudica a saúde indígena. Além disso, onde o garimpo se estabelece, há aumento nos casos de violência, já que a atividade tem se aliado a outras atividades criminosas, como o narcotráfico e a exploração ilegal de madeira.

O Ministério Público Federal constatou falhas sistemáticas do Governo na distribuição de alimentos e na segurança do território, fundamentais para fornecer  na região. Houve falhas do próprio exército brasileiro, conforme relatado por indígenas que, por viverem em áreas de difícil acesso, achavam que nunca veriam garimpeiros em suas terras.

O descaso histórico com os povos indígenas no Brasil

Não é segredo que a história do Brasil é repleta de episódios de violência e descaso com os povos originários. Desde a chegada dos europeus, com seus vírus completamente desconhecidos e armas de fogo, a população indígena tem sido dizimada por inimigos com os quais nunca soube lidar. Os indígenas, que sempre foram harmoniosos com a natureza e os animais, enfrentaram formas de agressão agindo de formas desconhecidas para eles até então.

Tela de Oscar Pereira da Silva sobre o desembarque de Cabral em Porto Seguro. Crédito: Arquivo Nacional / Creative Commons

Tela de Oscar Pereira da Silva sobre o desembarque de Cabral em Porto Seguro. Crédito: Arquivo Nacional / Creative Commons

Todo o processo de criação do estado brasileiro, do desbravamento do território na colônia à urbanização brasileira, foi marcado pela exclusão e pelo desrespeito à cultura e aos direitos indígenas. Doenças, disputas desiguais pelo território brasileiro, todos esses fatores tiveram impactos devastadores na vida dessas comunidades, também pelo descaso do Estado Brasileiro.

Historiadores estimam que 8 milhões de indígenas viviam no Brasil em 1500, sendo que ⅔ estavam no litoral. O Censo do IBGE de 2022 apontou que 1,7 milhão de brasileiros se identificavam como indígenas. O menor número da história foi de 70 mil pessoas, registrado em 1957.

Dos oito milhões de habitantes em 1500, segundo a estimativa da Funai, os povos indígenas totalizam 1,7 milhão de indivíduos em 2024.

A prevalência de doenças como malária, tuberculose e a desnutrição entre os povos indígenas por todo o território nacional evidenciam não apenas a profunda desigualdade social, mas a precariedade da infraestrutura a serviços básicos de saúde – resultado da falta de investimento em políticas públicas específicas.

O Brasil foi se formando a partir da população indígena, mas demorou muito tempo para cuidar desse grupo. A primeira Constituição Federal a reconhecer seus direitos é a de 1988, embora muitos ainda tenham ficado de fora daquele texto.

O Ministério da Saúde e a Saúde Indígena

O Ministério da Saúde, embora tenha avançado em algumas áreas, ainda enfrenta muitos desafios na missão de garantir o direito à saúde para essa população. Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1988, tivemos um marco legal muito importante, mas assim como tantas outras questões no Brasil, a teoria ainda está distante da prática.

A Constituição Brasileira de 1988 garante a implementação de uma série de políticas públicas específicas para os indígenas, como a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), mas infelizmente ainda enfrenta obstáculos para sua aplicação integral, precisando ser fortalecida em diversos aspectos.

As ações do Ministério da Saúde para os territórios indígenas. Crédito: Igor Evangelista/ MS 

As ações do Ministério da Saúde para os territórios indígenas. Crédito: Igor Evangelista/ MS

A falta de recursos, a dificuldade de acesso a profissionais de saúde qualificados e a falta de infraestrutura nas áreas indígenas contribuem para a precariedade dos serviços oferecidos – e para a fragilidade da saúde indígena. Em momentos em que a medicina indígena falha, eles precisam contar também com os conhecimentos do “homem branco” para sobreviver.

Mesmo com tantas dificuldades, a luta pelos direitos indígenas avança, muito impulsionada pela resistência, organização dos povos indígenas e pelo apoio da sociedade civil à causa. A criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), pensada para oferecer uma gestão descentralizada para a saúde indígena e garantir o acesso a diversos serviços de atenção básica, é uma dessas conquistas importantes.

A articulação entre os povos indígenas e organizações da sociedade civil, mais do que nunca, se torna crucial para pressionar o Estado a cumprir suas responsabilidades e garantir a saúde e o bem-estar dos povos indígenas, numa espécie de reparação histórica sutil a tudo que já fizemos a essa população.

O Ministério dos Povos Indígenas e o desafio de cumprir a Constituição

Criado no início do terceiro mandato do presidente Lula, em 2023, o Ministério dos Povos Indígenas, antes denominado de Ministério dos Povos Originários, é fruto de décadas de reivindicação dos movimentos indígenas, da população não-indígena e também de entidades da sociedade. A pasta também vai ao encontro do compromisso de Lula com um mandato de mais igualdade, simbolizado pela subida da rampa do Palácio do Planalto, no dia de sua posse.

Ao estabelecer uma porta-voz dentro do seu governo, o presidente da república estabelece um marco histórico e o início do reconhecimento dessa parcela da população como foco de políticas públicas específicas. Reconhecer a importância e as particularidades da população indígena é o primeiro passo para garantir sua participação na elaboração de políticas públicas específicas e que impactam diretamente na vida das aldeias indígenas.

No entanto, um ministério criado para defender interesses dos povos indígenas em uma sociedade conhecida historicamente por dizimar essa população não seria uma tarefa fácil. O novo ministério tem muitos desafios para implementar as políticas necessárias, mas antes de mais nada, deve proteger sua estrutura, suas atribuições e seu orçamento dos interesses externos.

Ao longo de sua atuação em frente à pasta, a ministra Sônia Guajajara enfrenta preconceito, esvaziamento de seu poder de decisão e isolamento na política nacional e na articulação com outros ministérios, além de críticas da população indígena pela pouca capacidade de negociação e aprovação de políticas importantes. A demarcação de novas terras indígenas é um dos pontos centrais das críticas, já que a questão havia sido esquecida nos anos dos governos Temer e Bolsonaro.

A derrubada do marco temporal pelo plenário do STF em 2023 foi uma vitória importante para os povos indígenas, pois confirmava o direito à terra a esses grupos e é um incentivo e uma proteção jurídica para o processo de demarcação de terras indígenas. O agronegócio havia proposto essa tese para evitar que terras utilizadas por produtores a partir de 1988 fossem devolvidas às aldeias indígenas.

Os desafios nacionais para a saúde dos povos indígenas brasileiros

A relação dos povos indígenas com a natureza é diferente, já que eles se consideram parte desse sistema e realizam trocas equilibradas, garantindo a preservação da fauna e da flora, além da sobrevivência de suas tradições. O vínculo dos indígenas com o lugar em que vivem é parte da identidade, tanto individual quanto coletivamente, e também é considerado uma manifestação histórico-cultural e espiritual.

Com a invasão dos territórios indígenas para exploração dos recursos naturais – da extração de madeira ao garimpo ilegais, passando pelo desmatamento para pastagens pecuárias – essa relação fica prejudicada, afetando diversos aspectos da vida das aldeias indígenas. A própria violência decorrente do garimpo ilegal coloca em risco a vida dos indígenas, já que eles controlam o acesso à região melhor do que o próprio exército.

A infraestrutura extremamente precária em terras indígenas contribui para a proliferação de doenças e aumenta a vulnerabilidade à contaminação por mercúrio e outros metais pesados. O difícil acesso das equipes de saúde às regiões onde estão as aldeias indígenas também dificulta a atenção básica e os cuidados de saúde por parte do governo.

No caso dos Yanomamis, no norte do país, o restabelecimento dos esforços governamentais também inclui políticas de combate a toda a cadeia do garimpo, da extração à venda do ouro por meio de notas falsificadas. Apesar dos esforços que sufocaram as operações na região demarcada em 2023, a infraestrutura de apoio não foi totalmente desmantelada. Com o afrouxamento da fiscalização e das políticas de combate, a atividade retornou rapidamente ao território yanomami assim que o exército e fiscais do Ibama diminuíram suas atividades.

As crianças são as mais afetadas pela infraestrutura precária de saúde. Crédito: Fernando Frazão/ Agência Brasil

As crianças são as mais afetadas pela infraestrutura precária de saúde. Crédito: Fernando Frazão/ Agência Brasil

A importância dos povos indígenas para o futuro do Brasil

De acordo com o Instituto Akatu, mesmo os povos indígenas constituindo apenas 5% da população global e ocupando somente 28% da superfície do planeta, eles são responsáveis, junto com as populações ribeirinhas, pela preservação de 80% da biodiversidade mundial, cuidando não só da fauna e da flora, mas também de rios, lagos e áreas marinhas. Em um país com a maior biodiversidade do mundo e que quer se posicionar como liderança na preservação do meio ambiente e no combate às mudanças climáticas, toda sabedoria nesse sentido é valiosa.

Além disso, por terem uma relação diferente com a natureza, os povos indígenas possuem práticas sustentáveis próprias e podem ensinar muito para os não indígenas. Seus conhecimentos ancestrais vão além, incluindo a medicina indígena, agricultura e astronomia, o que tem potencial para transformar ideias, contribuir para o desenvolvimento de novas tecnologias e apoiar a solução dos problemas atuais da humanidade.

Por isso, cuidar da saúde dos povos indígenas não é apenas um dever constitucional. Garantir a saúde, a segurança e o bem estar deles é o primeiro passo para uma sociedade em que teremos mais sustentabilidade, diversidade e conhecimento para pensar em um futuro melhor para todos.

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