ICL Notícias

Saneamento básico, sustentabilidade e meio ambiente: desafios do século XXI

Debates sobre o saneamento básico precisam incluir questões de sustentabilidade e meio ambiente. Ou arriscaremos nossa resiliência frente às mudanças climáticas?
23/07/2024 | 16h51

O saneamento básico pode passar longe da pauta de muitos debates eleitorais, mas é algo que faz parte de diversos aspectos da nossa vida cotidiana. Da água que consumimos ao manejo e à drenagem das águas pluviais, tudo está relacionado à Lei 11.445 de 2007, conhecida como Lei do Saneamento Básico, que contém as diretrizes nacionais.

Esse é considerado um serviço essencial pela Constituição Brasileira e deve ser assegurado para todos os cidadãos. Mas, na prática, não é bem assim. Muito além de coleta de lixo ou tratamento de esgoto, o saneamento básico é um dos maiores e mais complexos desafios ambientais e sociais do século XXI. E não apenas para o Brasil — esse tema precisa estar na pauta dos debates sobre globalização e meio ambiente.

O Brasil já avançou muito nos últimos anos, é verdade, mas ainda temos um longo caminho a percorrer para melhorar os cenários de sustentabilidade e meio ambiente.

Antes de concretizarmos o acesso universal e de qualidade a todos os serviços de saneamento básico, precisamos superar barreiras raciais, econômicas e geográficas, afinal, no país com dimensões continentais que foi o último do continente a abolir a escravidão, esse trabalho mistura bem-estar social com reparação histórica e decolonização.

As favelas são exemplos da desigualdade brasileira e um dos grandes desafios para a universalização do saneamento básico. Crédito: Rovena Rosa/ Agência Brasil

As favelas são exemplos da desigualdade brasileira e um dos grandes desafios para a universalização do saneamento básico. Crédito: Rovena Rosa/ Agência Brasil

Saneamento básico 2024: onde estamos?

De acordo com o IBGE, essas são as estatísticas ligadas aos três pilares do saneamento básico no Brasil:

Analisando as estatísticas por região, as disparidades são ainda maiores. As regiões Norte e Nordeste estão abaixo da média nacional, enquanto a região Sudeste detém os maiores números.

O acesso à infraestrutura de saneamento também tem um recorte racial: pretos, pardos e indígenas são os mais afetados; as etnias amarela e branca são, respectivamente, as que mais têm acesso a água encanada, coleta de lixo e coleta e tratamento de esgoto.

As discrepâncias entre população rural e urbana são outra perspectiva das desigualdades brasileiras. Enquanto a maioria das pessoas que moram em cidades acessa serviços de água tratada (93,4%), coleta de lixo (98,7%) e esgoto (63,2%), segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS) de 2022, o mesmo não se pode dizer dos brasileiros e brasileiras que vivem na zona rural.

Um levantamento do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em 2019, mostrou que apenas 40,5% da população rural tem abastecimento de água, 20,6% vive em domicílios conectados à rede de esgotamento sanitário e 23,6% acessa serviços de coleta de lixo.

Em áreas de estrutura precária, os córregos são o destino de lixo e esgoto, obrigando a população a se expor a doenças e ao mau cheiro. Crédito: Fernando Frazão/ Agência Brasil

Apesar das pesquisas e estatísticas nacionais deixarem de lado a drenagem e manejo das águas pluviais, esse fator também é importante. O quarto pilar do saneamento básico no Brasil tem relação direta com a mitigação dos efeitos da urbanização.

Inicialmente, foram pensadas estratégias para proteger a população de enchentes, alagamentos e deslizamentos de terra, efeitos da urbanização e da impermeabilização do solo. Mas, com o passar do tempo e a crescente preocupação com as questões ambientais, a importância da transformação dos modelos de drenagem urbana.

Os desafios de sustentabilidade e meio ambiente

As alterações nos regimes de chuvas causadas pelas mudanças climáticas mostram, como no caso da tragédia do Rio Grande do Sul, a importância de um sistema atualizado e eficiente de escoamento de águas. Logo após as chuvas, ficou claro que muito poderia ter sido feito para reduzir o alagamento do centro histórico e mais outros dez bairros de Porto Alegre e região metropolitana, além das inúmeras cidades afetadas no estado.

Agora, com a reconstrução das cidades gaúchas, o debate político precisa incluir o aumento de investimentos na infraestrutura de saneamento básico. Não apenas porque a qualidade de boa parte das reservas de água potável foi contaminada pelas enchentes, mas também para planejar uma infraestrutura mais resiliente para os eventos extremos – que devem ocorrer com mais frequência a partir de agora.

Apesar de não ser visto como tal, o setor de saneamento pode, sim, ser uma ferramenta para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Da preservação das nascentes de água a uma maior resiliência à mudança nos ciclos de chuva, as políticas públicas de acesso à água, esgoto e coleta de lixo podem garantir um futuro mais sustentável para todos.

A distribuição da água também se apresenta como um desafio para o futuro, falando sobre globalização, sustentabilidade e meio ambiente. E isso mesmo quando pensamos que o Brasil possui dois grandes aquíferos em seu território, o Guarani na região Centro-Sul, e o de Alter do Chão, na região Norte.

O desperdício na tubulação de água é um dos grandes problemas ambientais e de saneamento. A média nacional de perdas de água tratada na cadeia de distribuição é de 38,4%, mas o índice sobe para 55,5% na região Norte.

Os principais fatores causadores da perda são fraudes, as conhecidas ligações clandestinas, e os vazamentos decorrentes de uma estrutura antiga e com menos manutenção e atualização do que o recomendado. E tudo isso em um país onde 33 milhões de brasileiros não têm acesso à água, vivendo em condições insalubres.

O Fórum Econômico Mundial listou, em 2019, a escassez de água como um dos maiores riscos globais em termos de impacto potencial na próxima década. Crédito: Instituto Água e Saneamento/ Divulgação

Como a falta de saneamento básico afeta a saúde humana?

Considerando que a água é fundamental para a manutenção do corpo humano — e que nossa composição é de 70% de água — o acesso a serviços de saneamento tem influência direta na prevenção de doenças e na qualidade de vida. Tanto é que a vigilância e controle de qualidade da água são atribuições do SUS.

A falta de saneamento básico, que podemos traduzir por contato com esgoto e consumo de água sem tratamento, causa diversas doenças e é um dos principais fatores da mortalidade infantil. Parasitoses, febre tifóide, leptospirose e dengue são algumas das doenças decorrentes da falta de saneamento básico.

Segundo a OMS, cada US$1 investido nessa infraestrutura gera US$5 de economia para a área da saúde. O Instituto Trata Brasil também destacou que municípios com esgotamento inadequado apresentam maiores taxas de hospitalização por diarreia, sendo as crianças mais de 50% dos pacientes desses casos.

Além das doenças decorrentes do contato com água contaminada (seja não tratada, seja esgoto), o descarte inadequado de lixo e esgoto atrai animais, como ratos e baratas, que também transmitem doenças.

A vulnerabilidade de bebês é tamanha que uma das principais medidas para reduzir a mortalidade infantil no Brasil é a ampliação das redes de água e esgoto, já que as crianças pequenas são mais vulneráveis a essas doenças.

Os lixões, outro conjunto de imagens emblemáticas quando o assunto é saneamento básico, ainda vão perdurar por mais algum tempo na paisagem brasileira. O Marco Legal do Saneamento Básico previa a extinção dos locais de descarte sem tratamento adequado até 2024, mas tanto o governo federal quanto diversos municípios já se mobilizaram para prorrogar o prazo.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos, de 2010, já estabelecia o fim dos lixões. O Plano Nacional de Resíduos Sólidos, de 2022, estima uma economia de 80% dos custos com gestão de resíduos com o cumprimento de todas as medidas. Crédito: Tânia Rego/ Agência Brasil

Segundo analistas do setor e associações de catadores, falta motivação para seguir a determinação. Diversos porta-vozes apontam que a destinação correta dos resíduos sólidos traria inúmeros ganhos econômicos, além de ambientais e sociais, para a população.

Quais os impactos da falta de saneamento básico no meio ambiente?

O meio ambiente tem uma relação intrínseca com o sistema de saneamento básico. Além da poluição de rios e outras fontes de água, impactando também na fauna e na flora da região, a ausência dos serviços de água e esgoto prejudica a preservação do meio ambiente e até mesmo a segurança hídrica da população.

A falta de drenagem das águas pluviais intensifica a degradação do solo e o assoreamento de rios. O tratamento inadequado de resíduos sólidos e do esgoto libera gases de efeito estufa na atmosfera, o que impulsiona os efeitos das mudanças climáticas.

Nos oceanos, a poluição gerada por resíduos descartados incorretamente já é percebida na presença de micropartículas de plásticos em peixes e outros animais marinhos e nas ilhas de plásticos, um fenômeno em que o lixo se concentra de forma acumulada na superfície da água.

Atualmente há uma ilha maior que o estado do Amazonas no Oceano Pacífico e a ONU estima que até 2050 pode haver mais plástico do que peixes nos oceanos. Essa deve ser uma das principais motivações para reduzir drasticamente o consumo de embalagens plásticas, além de garantir o descarte correto desses resíduos.

Por último, mas não menos importante, a ausência de saneamento básico contamina as fontes de água, ameaçando as atividades econômicas e a própria existência humana.

O Fórum Econômico Mundial destacou, ainda em 2019, que a água está relacionada a cinco dos seis maiores riscos que podem impactar a próxima década globalmente. Entre esses riscos estão a falta de água, desastres climáticos e a inabilidade de mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

80% da poluição dos oceanos é composta de plásticos, que levam entre 500 e 1000 anos para se decompor . Crédito: Randy Olson/ National Geographic

80% da poluição dos oceanos é composta de plásticos, que levam entre 500 e 1000 anos para se decompor . Crédito: Randy Olson/ National Geographic

Como estão os debates no Congresso sobre saneamento?

Já temos a Lei 11.445 de 2007, ou Lei do Saneamento Básico, mas ao mesmo tempo, parcelas significativas da população ainda estão sem acesso a esses serviços. Por isso, a necessidade de mais debates e iniciativas se mantém fundamental.

Em 2020, o Congresso Nacional votou e o ex-presidente Jair Bolsonaro sancionou o Novo Marco Legal do Saneamento Básico. A Lei 14.026 estabelece novas metas para os serviços fundamentais. Até 2023, 99% da população deve ter acesso à água potável, enquanto o tratamento e a coleta de esgoto precisam atender pelo menos 90% da população.

Estação de tratamento de esgoto. Crédito: Tomas May/ ANA

Estação de tratamento de esgoto. Crédito: Tomas May/ ANA

O texto, de relatoria do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), propõe a possibilidade de privatizações e de parcerias público-privadas para que seja possível modernizar o setor. A nova lei permite, além disso, a regionalização das operações de saneamento básico, facilitando a organização de diversos municípios para a contratação de um agente privado.

Diversos outros textos tramitam entre Senado e Câmara dos Deputados com propostas. O projeto de lei 1952/2022, do senador Jader Barbalho (MDB-PA) propõe, entre outras providências, garantir o acesso ao saneamento básico como direito social.

Ainda aguardando a relatoria da Comissão de Meio Ambiente do Senado, o PL 260/2024 pretende deliberar sobre a remoção de poluentes orgânicos persistentes, substâncias químicas que podem desregular o sistema endócrino e microplásticos das águas brutas e residuárias. A última atualização sobre o texto é de março de 2024.

A polêmica em torno da privatização da Sabesp

Em dezembro de 2023, a Câmara dos Vereadores de São Paulo aprovou o projeto de lei para a privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). Promessa de campanha do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), o projeto transfere parte das ações da companhia do governo paulista para a iniciativa privada.

A Sabesp é a maior empresa de saneamento básico do Brasil. Crédito: Divulgação/ Sabesp

A ideia inicial era transferir 15% do controle da companhia para o investidor de referência e aumentar a porcentagem da Sabesp negociada nos mercados de ações de 49,7% para 66,7%. O Governo Estadual continuaria como acionista, mas passaria dos atuais 50,3% para apenas 18,3%.

Entre polêmicas na votação, protestos da oposição e da população — que em sua maioria é contra a privatização — apenas a Equatorial formalizou uma proposta no processo de privatização. A empresa possui apenas uma concessão no setor, no estado do Amapá, e atua há apenas dois anos.

Vereadores da oposição criticam o projeto e a pressa na tramitação, alegando que não houve debate democrático e não há cálculos nem embasamentos suficientes para garantir que a proposta não trará prejuízos à população.

A prefeitura de São Paulo foi envolvida, pois é a maior cliente da Sabesp, e caso a privatização não fosse aceita pelos vereadores, o projeto seria economicamente inviável.

Especialistas afirmam que o texto, que propõe que parte da verba da venda da Sabesp seria utilizada para subsidiar tarifas sociais de saneamento, é contraditório em si, além de descumprir a Lei de Diretrizes Orçamentárias, que impede governos de utilizarem verbas de privatizações para gastos recorrentes. Também fica o questionamento se essa iniciativa não vai de encontro ao compromisso federal de universalizar o acesso a esses serviços. O governador já admitiu que a privatização não reduzirá tarifas.

Como o processo ainda não foi concluído, ainda há espaço para mobilização e ação.

A oposição aponta uma série de irregularidades legais na forma como o projeto foi apresentado, os requisitos para sua votação e o embasamento do projeto. A população se diz contra a privatização. A gestão Tarcísio tem pressa em concluir a venda da Sabesp.

O futuro da água no Brasil

A verdade é que o panorama do saneamento básico no Brasil é extremamente preocupante. Para o país com duas das maiores reservas de água do planeta, deveríamos cuidar melhor desse recurso tão precioso – que, ao mesmo tempo, é gravemente afetado pela falta de esgoto tratado e coleta de lixo adequada, e traz consequências seríssimas na relação entre sustentabilidade e meio ambiente, além dos problemas de saúde pública.

Os investimentos em saneamento são urgentes, seja por se tratar de um pilar do desenvolvimento sustentável tão alardeado pelo Brasil em eventos internacionais, seja como mecanismo de proteção do meio ambiente e de redução das desigualdades. Avançamos em legislações e políticas públicas, sim, mas a realidade é que milhões ainda não têm acesso à água potável e a serviços essenciais de saneamento.

Com o agravamento das mudanças climáticas, os desastres naturais serão mais intensos e frequentes, exigindo também ações coordenadas por todas as esferas do poder público para proteger a população. Por isso, fortalecer as políticas públicas, aumentar os investimentos e convidar a sociedade a participar é fundamental.

Uma questão tão complexa quanto a estrutura incipiente de saneamento básico precisa de uma resposta a altura, de todos. E apenas depois que a mudança tiver início é que o Brasil poderá se dizer um país para todos.

Deixe um comentário

Mais Lidas

Assine nossa newsletter
Receba nossos informativos diretamente em seu e-mail