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Transformação digital: saiba como a dependência de tecnologia estrangeira pode afetar a soberania nacional

Dados, servidores e algoritmos: os novos territórios em disputa
23/04/2025 | 17h09
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*Por Iago Filgueiras

Em uma era marcada pela transformação digital, tecnologias como inteligência artificial, armazenamento em nuvem e a facilidade de conexão com a internet estão revolucionando governos, empresas e o cotidiano das pessoas. Mas essa mudança também traz um paradoxo: ao mesmo tempo em que avançamos em inovação, os países e empresas que controlam o ambiente digital ganham cada vez mais poder.

Nesse artigo vamos explorar o que é a transformação digital e como esse processo pode ser analisado do ponto de vista crítico para assegurar que, além de desenvolvimento social e tecnológico, consigamos utilizar as tecnologias sem abrir mão de nossa soberania.

O que é transformação digital e por que ela importa

A transformação digital é um fenômeno marcado pelo uso da tecnologia para solucionar problemas e aumentar a eficiência em processos das mais variadas áreas. Em tempos de massificação do uso da internet isso tem sido cada vez mais valorizado.  Assim, além de resolver problemas, a incorporação desses recursos muda a forma como nos relacionamos e cria novos paradigmas em diversas áreas do conhecimento.

Com o avanço das tecnologias, cada vez mais setores da sociedade precisam de adaptar para incorporar novas soluções. Imagem: reprodução

Com o avanço das tecnologias, cada vez mais setores da sociedade precisam de adaptar para incorporar novas soluções. Imagem: reprodução

No governo, na economia, na educação ou no ambiente corporativo, ninguém escapa dos avanços que os recursos digitais podem oferecer — ou melhor, aqueles que não se integram a essa nova realidade acabam ficando para trás.

Além de otimizar a eficiência, essas novas tecnologias podem automatizar processos e melhorar a experiência do cliente ou usuário. Saiba quais são os principais recursos envolvidos na transformação digital:

  • Inteligência Artificial (IA) e Machine Learning: automação de processos e análise preditiva.
  • Computação em Nuvem: oferta de serviços como armazenamento, banco de dados e softwares pela internet.
  • Internet das Coisas (IoT): dispositivos conectados gerando dados em tempo real.
  • Big Data e Analytics: análise de dados para encontrar padrões, correlações e tomar decisões estratégicas.
  • Blockchain: tecnologia que permite registrar e compartilhar transações digitais de forma segura e transparente.

Quais são os impactos da transformação digital?

A transformação digital produz impactos que podem ser percebidos no setor público, privado e até mesmo na esfera individual. Para empresas, a adoção de recursos tecnológicos tem possibilitado a redução de custos, maior eficiência operacional e o surgimento de novos modelos de negócio — como marketplaces e plataformas de streaming.

Já no setor público, além de otimizar a eficiência, a incorporação de ferramentas digitais colabora para a promoção da transparência, ao permitir que informações e dados sejam consultados pelos cidadãos. Além disso, ela otimiza o acesso a serviços públicos que podem ser realizados de forma digital, como emissão de alguns documentos e solicitações. No Brasil, por meio do gov.br, é possível acessar mais de 4 mil serviços.

Com essa transformação atingindo negócios e governos, a vida cotidiana também é profundamente afetada. No país, 92,5% dos domicílios podem se conectar online e 66,3% da população tem perfis em redes sociais. Como resultado disso, nossa vida se tornou mais prática e nossas experiências virtuais se tornaram cada vez mais personalizadas.

Se há alguns anos a ideia de se consultar com um médico sem sair de casa dependia do deslocamento de um profissional de saúde, com a transformação digital isso pode ser feito pela tela do celular. Emitir um documento, controlar um eletrodoméstico ou ler um livro… Hoje, com poucos cliques, tudo isso pode ser feito online.

Isso mostra como o ambiente digital está presente em todas as esferas da nossa vida e como passamos a utilizá-lo com cada vez mais intensidade. Segundo uma pesquisa do DataReportal, os brasileiros passam em média mais de 9h por dia em frente às telas. E embora não consigamos perceber, a cada momento que usamos a internet, estamos também compartilhando informações e dados sobre a nossa vida.

Com mais gente conectada, a internet adquire um papel cada vez maior. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil 

Com mais gente conectada, a internet adquire um papel cada vez maior. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil 

Nossas curtidas, buscas e acessos são coletados e armazenados, o que permite entender de forma individualizada o gosto e preferência de cada usuário. Assim, recebemos anúncios mais direcionados, por exemplo.

Mas esse grande volume de informações gerado dia após dia não serve apenas para isso, mas também para tomada de decisões. Os dados coletados podem servir para orientar ações de marketing, projetos de expansão em empresas, moldar políticas governamentais e até mesmo influenciar comportamentos.

Nesse processo de transformação digital, todas as mudanças acontecem em uma velocidade surpreendente. Pouco tempo após ser lançada ao público, a Inteligência Artificial — treinada com dados que nós mesmos geramos — já era capaz de produzir vídeos e imagens tão reais que, para muitos, perceber a manipulação se tornou quase impossível.

Nesse cenário, cada vez mais recursos tecnológicos são adotados por empresas, governos, organizações e pessoas. Por isso, se torna fundamental pensar criticamente sobre o papel do mundo digital em nossa sociedade e nas mãos de quem esse poder está concentrado.

A distribuição desigual da tecnologia

A internet já está tão presente em nossa vida que, segundo a YouGov Survey, 40% dos consumidores das Américas levam os aparelhos celulares quando vão ao banheiro. Esse uso quase instintivo de ferramentas digitais faz com que muitas vezes deixemos de notar que a internet precisa também de infraestrutura física para existir.

Cabos submarinos para transmissão de informações, supercomputadores para processamento e servidores para armazenagem. Tudo isso existe fisicamente, tem fabricante, dono e endereço.

A internet depende também de estruturas físicas para garantir o seu funcionamento. Foto: Jason Henry

A internet depende também de estruturas físicas para garantir o seu funcionamento. Foto: Jason Henry

Com o enorme volume de dados gerado diariamente pelos mais diversos tipos de usuário — de empresas a governos — guardar essa quantidade de informações ficou cada vez mais difícil. O armazenamento em nuvem veio para solucionar esse problema. Nele, as informações ficam guardadas em servidores que podem ser acessados remotamente, diminuindo custos com infraestrutura e facilitando o acesso a novas ferramentas.

Mas esse mercado é concentrado nas mãos de poucas empresas — Amazon, Microsoft e Google controlam 65% dele. Além disso, dos 12 mil datacenters que armazenam e processam dados em todo o mundo, cerca de 5,3 mil estão nos Estados Unidos.

Quanto à infraestrutura digital, o cenário é bem parecido. Entre as maiores empresas de tecnologia do mundo, a maioria é estadunidense, com exceção de algumas chinesas. As redes sociais — usadas por mais de 5 bilhões de usuários em todo o mundo — não escapam dessa lógica. Segundo a We Are Social, essas são as plataformas mais utilizadas:

  • Facebook (EUA) – 3 bilhões de usuários
  • YouTube (EUA) – 2.7 bilhões de usuários
  • WhatsApp (EUA) – 2.4 bilhões de usuários
  • Instagram (EUA) – 2.35 bilhões de usuários
  • TikTok (China) – 1.67 bilhão de usuários
  • WeChat (China) – 1.31 bilhão de usuários
  • Messenger (EUA) – 1.1 bilhão de usuários
  • Telegram (Rússia/Emirados Árabes) – 900 milhões de usuários
  • Viber (Japão) – 820 milhões de usuários
  • Snapchat (EUA) – 800 milhões de usuários

Com os algoritmos das redes sociais definindo o que será ofertado para cada usuário, essa concentração de poder acende um alerta. Um monitoramento do Núcleo, em parceria com a revista AzMina, revelou que adolescentes de 14 e 15 anos podem estar sendo expostos a conteúdos de extrema-direita, desinformação e discursos misóginos no TikTok, o que levanta o debate sobre a influência dessas redes em nossa democracia.

Se observarmos quem concentra o poder de decisão e influência sobre essas grandes empresas e donos de infraestrutura tecnológica, é possível perceber que a relação é assimétrica. Enquanto poucos países de fato conseguem exercer algum controle, outros acabam desempenhando o papel de usuários ou consumidores, sem um potencial real de agir para defender os interesses internos. Essa relação tem sido chamada por especialistas de colonialismo digital.

O colonialismo digital e como ele se manifesta

Ao longo do tempo, a noção de colonialismo sempre esteve ligada ao controle de um território sobre outro. Se tomarmos como exemplo o Brasil Colonial, o domínio Português impunha uma relação onde a colônia enviava matéria-prima para a metrópole e importava bens mais elaborados.

Olhando para o cenário de transformação digital do presente, é possível encontrar algumas semelhanças com as práticas do passado. Se antes produtos como o ouro, o café e o açúcar eram exaustivamente explorados, hoje, os dados também entram nesse pacote. Mas se naquela época quem exercia o controle era a Metrópole, agora são as grandes empresas de tecnologia — as famosas Big Techs e os governos dos países onde elas estão sediadas.

Para o sociólogo e professor da UFABC, Sérgio Amadeu, esse é o caso do Brasil. “Nós entregamos nossos dados para o exterior e, com esses dados, os sistemas de inteligência artificial (IA) criam produtos e serviços e depois vendem para a nossa população e extraem mais riqueza ainda”, afirmou entrevista à Agência Brasil.

Essa relação, onde a infraestrutura digital está concentrada nas mãos de empresas estrangeiras, leva a um cenário onde essas grandes companhias acabam por impactar no desenvolvimento local de novas tecnologias, dominam o mercado impedindo a competição e adquirem a capacidade de tensionar instituições.

Uma situação que ficou evidente em 2024, quando a rede social X, de propriedade do bilionário Elon Musk, se recusou a cumprir determinações judiciais da Justiça brasileira, alegando que estava defendendo uma suposta liberdade de expressão.

Por contrariar decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2024, o X foi suspenso no Brasil por mais de um mês. Foto: Saulo Ferreira Angelo/Shutterstock

Por contrariar decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2024, o X foi suspenso no Brasil por mais de um mês. Foto: Saulo Ferreira Angelo/Shutterstock

Em oposição a essa ideia de colonialismo, muitos pesquisadores têm debatido sobre a importância da soberania digital como forma de assegurar o controle sobre tecnologias fundamentais para o desenvolvimento social e tecnológico de uma nação. Afinal, a transformação digital já é uma realidade e é preciso pensar no papel que queremos desempenhar em meio a esse processo.

A importância da soberania digital

A soberania pode ser entendida como a prerrogativa de um Estado de garantir sua integridade territorial, relacionar-se em pé de igualdade com outros países e resistir a interferências externas. Além disso, inclui o direito de exercer autoridade sobre seu território e fazer uso legítimo da força.

Nesse sentido, a transformação digital das sociedades traz um novo desafio. Como preservar essa soberania quando tecnologias digitais — globalmente conectadas — são capazes de minar essa autoridade?

É aqui que entra a soberania digital, que busca estender a autoridade nacional também ao ambiente virtual. Seu objetivo é permitir que um país exerça controle sobre recursos estratégicos, como dados, softwares, infraestrutura física e redes — elementos fundamentais para o desenvolvimento tecnológico e a autonomia no cenário contemporâneo —, reduzindo a dependência e possibilidade de intervenção externa.

Em 2024, uma pane na Crowdstrike — empresa estadunidense de cibersegurança — impactou o funcionamento de milhões de sistemas operacionais ao redor do mundo. No Brasil, os impactos foram diversos, com voos cancelados, cirurgias eletivas adidas e transações bancárias impossibilitadas.

Pane da Crowdstrike em 2024 afetou o funcionamento de milhares de empresas ao redor do mundo. Foto: Reuters/Bing Guan

Pane da Crowdstrike em 2024 afetou o funcionamento de milhares de empresas ao redor do mundo. Foto: Reuters/Bing Guan

Momentos como esse deixam claro a situação de fragilidade de diversos países em relação à soberania digital. Uma vez que, sem esses recursos tecnológicos, empresas, governos e organizações acabam seriamente afetados. Embora tenha sido uma falha, sem meios próprios de desenvolvimento tecnológico ficamos cada vez mais dependentes.

Além disso, em relação às redes sociais, há uma preocupação crescente com a influência que elas podem desempenhar em sociedades democráticas, através da disseminação de fake news e discursos de ódio. Esse temor levou a União Europeia a criar regras que prevem a aplicação de multa e suspensão caso essas plataformas não consigam impedir que elas sejam utilizadas pala influenciar processos eleitorais.

Soberania digital no Brasil: desafios e avanços

O Brasil tem buscado fortalecer sua soberania digital diante da dependência de tecnologias estrangeiras e da concentração de dados em plataformas globais. Com iniciativas como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o Marco Civil da Internet, o país avança na proteção de dados e na regulação do ambiente digital, mas ainda enfrenta desafios críticos, como a falta de infraestrutura local e a dominância das Big Techs.

Essas leis estipulam, por exemplo, que dados coletados no país — mesmo que armazenados no exterior — estejam sujeitos às legislações brasileiras, fazendo com que eles não possam ser usados de forma arbitrária por empresas estrangeiras. Além disso, estabelecem também a igualdade de acesso, impedindo que provedores de internet globais consigam manipular a velocidade da conexão no Brasil e afetem a competitividade das empresas nacionais.

No entanto, ainda existem algumas preocupações. A pesquisa Educação Vigiada, apontou que de 144 domínios de e-mails usados por universidades brasileiras, 72% são armazenados no Google e 8% na Microsoft. O que levanta questões sobre a real segurança dos dados e pesquisas brasileiras, uma vez que, embora sujeitas à legislação nacional, estão sob controle de empresas internacionais.

Mas as regulamentações brasileiras e iniciativas do governo também oferecem caminhos que contribuem para a soberania. Com a transformação digital, até a forma como fazemos pagamentos foi afetada e o Pix surge justamente nesse contexto. A ferramenta — que permite processamento quase imediato de transações financeiras — foi desenvolvida no Brasil e oferece uma alternativa nacional aos sistemas de pagamentos eletrônicos.

Outra alternativa que busca assegurar a soberania digital é o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), apresentado pelo governo federal em 2024. A ideia é impulsionar o desenvolvimento dessa tecnologia no Brasil, desde a estruturação de banco de dados para o aprendizado de máquina até a criação de supercomputadores para processamento, estimulando também que o país reduza sua dependência em relação à infraestrutura física.

Mas se por um lado o país avança, por outro o poder das grandes empresas de tecnologia também. Um exemplo disso foi a campanha das big techs contra a aprovação do PL das Fake News — legislação que previa a regulação das plataformas digitais e previa a punição e responsabilização das empresas que não tomassem medidas contra a desinformação.

Em 2024, o presidente Lula recebeu o Plano Nacional de Inteligência Artificial (PBIA) durante a 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. Foto: EBC/Agência Brasil

Em 2024, o presidente Lula recebeu o Plano Nacional de Inteligência Artificial (PBIA) durante a 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. Foto: EBC/Agência Brasil

Mesmo com alguns exemplos que mostram que o país tem caminhado para garantir a soberania em um cenário de intensa transformação digital, o Brasil ainda convive com desafios significativos.

Com a incorporação de novas tecnologias em todas as áreas, novos produtos e equipamentos são desenvolvidos quase que diariamente e é importante investir também no setor industrial para que o país possa ter autonomia no desenvolvimento de tecnologias próprias.

Um dos principais materiais para a produção de dispositivos eletrônicos são os semicondutores, alvos de uma disputa global entre EUA e China. No Brasil, apenas 10% desses componentes são fabricados localmente, o que expõem a fragilidade da nossa indústria tecnológica.

Discutir soberania digital se torna fundamental não apenas para garantir que os brasileiros não fiquem para trás na corrida tecnológica, mas também para assegurar que, em plena transformação digital, os interesses nacionais sejam atendidos, promovendo também o desenvolvimento social e industrial do país.

Transformação digital é preciso e soberania também

A transformação digital é um processo irreversível que redefine a forma como nos relacionamos, produzimos e nos organizamos em sociedade. No entanto, os benefícios dessa revolução tecnológica precisam caminhar lado a lado com a preservação da soberania nacional e com a construção de ambientes digitais mais democráticos, seguros e inclusivos.

Em tempos de transformação digital, fomentar o desenvolvimento de tecnologias nacionais é também uma questão de soberania. Imagem: reprodução

Em tempos de transformação digital, fomentar o desenvolvimento de tecnologias nacionais é também uma questão de soberania. Imagem: reprodução

O Brasil, assim como muitos outros países em desenvolvimento, enfrenta o desafio de equilibrar a incorporação de tecnologias globais com a necessidade de construir infraestrutura própria e fortalecer sua capacidade de decisão sobre dados e sistemas estratégicos.

Por isso esse debate se torna fundamental. Afinal, em um mundo onde dados e tecnologias atravessam fronteiras com facilidade, a capacidade de um país proteger seus interesses e garantir autonomia digital é também uma questão de cidadania, segurança e desenvolvimento.

Se você quer se aprofundar nesse tema e entender os desafios e caminhos possíveis para o Brasil na era da transformação digital, conheça a plataforma do ICL e tenha acesso ao curso “Soberania Digital: um novo cenário internacional”.

 

*Estagiário sob supervisão de Leila Cangussu

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