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Bolsonaro na Mocidade ‘é a cara’ do esvaziamento político na base e não é por acaso

É preciso enxergar as escolas de samba como espaços de sociabilidade que fazem frente ao avanço da extrema direita, mas falta apoio
19 de março de 2024

Por Lucas Rocha*

A ida do ex-presidente Jair Bolsonaro à quadra da Mocidade Independente de Padre Miguel, na zona oeste do Rio de Janeiro, chocou o mundo do samba. Como pode um notório inimigo do carnaval e da cultura negra brasileira promover um ato no chamado Maracanã do Samba? A explicação, a meu ver, está menos no bolsonarismo e mais nas ausências de debate político nas bases e de presença do Estado. No fim, o comício com o ex-presidente, que não pretendo entrar em detalhes, não se dá por acaso.

Enquanto os sambistas — muitos ligados à Mocidade — lamentavam o episódio, o campo progressista parece ter aproveitado o momento para relacionar o ex-presidente com grupos criminosos, incentivando uma criminalização do carnaval e da cultura popular. Essa narrativa demonstra uma cegueira política e uma falta de fôlego em politizar um debate por baixo e criar novas narrativas, principalmente aquelas que chamam a população pra dentro da política por meio de afeto, senso de pertencimento e acolhimento — o que o prefeito Eduardo Paes tem feito com maestria e voltou a fazer ao responder os ataques proferidos pelo governador Cláudio Castro durante o evento da Zona Oeste. Quando Paes rebate a fala de Castro e defende a cultura de bares da cidade, ele abraça um elemento tradicionalmente carioca e truca a extrema-direita. Autores como Carlos Mariátegui e Chantal Mouffe já nos contaram sobre a necessidade de articulação de uma política de esquerda que também mobilize paixões…

Quando se fala em escola de samba, não dá para olhar apenas para o espetáculo que acontece na Marquês de Sapucaí que atrai olhares de todo o Brasil e do mundo. Uma escola de samba representa uma comunidade que se defronta com a negação de direitos básicos, que cria laços de sociabilidade naquele espaço e que forma, sim, um espaço político em um território. Político desse a concepção, pois o surgimento está ligado a uma expressão cultural do povo preto em meio a negação de direitos. A escola de samba empodera populações historicamente excluídas, que tomam para si um direito à humanidade, como nos contam Carlos Fernando Cunha, Vinicius Natal e Nathalia Sarro no brilhante livro “A Kizomba de Vila Isabel” (Expressão Popular).

Mas o que isso tem a ver com o Bolsonaro?

Bem, os espaços de coletividade comunitários são fundamentais no enfrentamento ao avanço da extrema-direita brasileira — que funde neoliberalismo autoritário com fundamentalismo religioso — por aprofundarem laços, promoverem o senso de coletividade e buscarem a garantia de direitos básicos.

Por mais que muita gente progressista torça o nariz, as escolas de samba, enquanto espaços políticos, também se inserem na disputa política, seja pelas lideranças locais que organizam uma base social, seja pelos debates que podem pautar. Inclusive, a ida de Bolsonaro à Mocidade está mais ligada à influência de lideranças que estão mais próximas de um centrão do que a um adesismo ao bolsonarismo. Como dizia o samba deste ano, “a Mocidade é a cara do Brasil”. Onde não há debate político, o centrão se cria e abre as portas para todo tipo de aliança.

E essa aliança em especial expõe um problema grave do campo progressista em se relacionar com as bases. Não que tenha que se chegar no solo sagrado de uma escola de samba com uma cartilha para catequizar a comunidade, mas é importante se fazer presente nos espaços visibilizando as demandas da comunidade, dando apoio à manifestação artística, e, no plano maior, trabalhando pela garantia de direitos a essas populações. A gente tem grandes exemplos de construção comunitária politizada nos espaços do carnaval, como o desfile de 1988 da Unidos de Vila Isabel. Sem patrono, sem dinheiro e sem quadra, a Vila de Martinho e da ex-presidenta Ruça, militante do PCB, viveu uma experiência de construção coletiva quase socialista que promoveu um dos maiores acontecimentos da história do carnaval, o desfile de Kizomba, a Festa da Raça.

Alexandre Ramagem, Jair Bolsonaro e Claudio Castro

Como não existe vácuo na política, em um cenário marcado por ausências, se consolidam alternativas que podem resolver problemas mais rápidos — uma praça, uma rua asfaltada —, ainda que sem identidade política. E, no fim das contas, isso pavimenta o caminho para quem nega a política.

E nada é por acaso. As escolas de samba vivem um momento de enfraquecimento como espaços de sociabilidade e suas principais “algozes” são as igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais — um dos pilares do bolsonarismo. Essas igrejas fazem a disputa no território e, para impor seu plano de dominação política, impedem que seus fieis frequentem outros espaços de sociabilidade. Tem que escolher: escola de samba ou o rebanho. E a decisão acaba não sendo tão difícil quando a pessoa vê na igreja um espaço em que pode ter o mínimo de garantia de direitos, através das ações sociais religiosas, e um acolhimento que o Estado não proporciona.

Hoje, faltam baianas para desfilar nas escolas de samba. Rodou bastante nas redes sociais uma postagem da sambista Gabi Moreira que desfilou em 14 escolas em 6 dias de desfiles, em quase todas as divisões. O ato de amor ao carnaval expõe essa triste realidade onde não estão mais nas escolas de samba aquelas mulheres que foram passistas, brincaram em ala e foram o grande amor de um mestre-sala, como diria Martinho da Vila.

E é nesse ponto que o ciclo se fecha. Esvaziam-se as escolas de samba, esvazia-se a política, cresce a base que vai dar suporte a Bolsonaro. Ele não estava ali por acaso.

“Oh, Pátria amada, por onde andarás?

Seus filhos já não aguentam mais!

Você que não soube cuidar

Você que negou o amor

Vem aprender na Beija-Flor!”

(Beija-Flor, 2018)

 

*Lucas Rocha é um jornalista que cobre política nacional e América Latina, mestre em Estado, Governo e Políticas Públicas e um apaixonado pesquisador do carnaval.

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