Por Catarina Duarte — Ponte Jornalismo
O Brasil é um país em que o racismo sistêmico se fixou na polícia e no sistema de justiça. A consequência é que o uso excessivo da força e o encarceramento afetam desproporcionalmente a população negra. Essa é a conclusão de um grupo de especialistas das Organizações das Nações Unidas (ONU), presente num relatório divulgado no dia 2 de outubro. Diante do quadro, a ONU recomenda políticas para segurança pública que defendam os direitos humanos, como uma polícia nacional para regular o uso da força pelas polícias do país.
O relatório é resultado da visita ao Brasil de representantes do Mecanismo Internacional Independente de Especialistas para Promover a Justiça Racial e a Igualdade no Contexto da Aplicação da Lei (EMLER, na sigla em inglês). O grupo esteve em cinco capitais do país — Brasília, Fortaleza, Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro — entre novembro e dezembro do ano passado.
O objetivo era identificar boas práticas e os desafios enfrentados pelo Brasil na questão racial, no contexto da atividade policial e do sistema de justiça criminal.
O objetivo era identificar boas práticas e os desafios enfrentados pelo Brasil na questão racial, no contexto da atividade policial e do sistema de justiça criminal.
Os representantes do Mecanismo reuniram-se com autoridades federais, estaduais, órgãos de controle interno, agentes penitenciários e defensores públicos. Também foram visitados dois centros de detenção. Outro elemento que auxiliou na elaboração do relatório foram testemunhos: ao todo, 117 vítimas e familiares de vítimas foram ouvidos e 41 relatos por escrito compuseram o texto final.
Pretos são os que mais morrem nas mãos da polícia
A violência generalizada no país afeta desproporcionalmente pessoas pretas, concluiu a ONU. Para demonstrar essa percepção, o relatório cita os dados do 18º Anuário Brasileiro da Segurança Pública, divulgados em julho deste ano.
Das 46.328 mortes violentas intencionais ocorridas no Brasil em 2023, 78% eram de pessoas negras. O índice também é alto entre as crianças: 70,3% dos mortos entre 0-11 eram negros; entre 12-17 foram 85,4%.
A ONU descreve haver uma cultura policial e uma política de segurança pública baseadas na repressão, na violência e numa “masculinidade hipertóxica”. Neste contexto, pretos, destaca o relatório, são muitas vezes injustamente associados a criminalidade ou considerados meros danos colaterais de operações policiais.
‘Profundamente preocupado’
Os especialistas da entidade destacam não haver no Brasil uma lei nacional que regule o uso da força. E destacam que, em geral, o Direito Penal no Brasil dá aos policiais escopo notavelmente amplo para reivindicação de legítima defesa às mortes decorrentes do uso excessivo da força.
“O Mecanismo está profundamente preocupado que a atual situação regulatória conduza ao uso precoce e injustificado de força, inclusive da força letal, por policiais”, afirma o relatório.
Para os pesquisadores, enquanto nem todos os regulamentos sobre uso da força estiverem consoantes às normas internacionais, os incidentes de uso excessivo da força pela polícia continuarão impunes.
Andrea Carvalho, pesquisadora do Human Rights Watch (HRW), diz que, assim como pede a ONU, a HRW tem insistido bastante para que seja instituída uma estratégia nacional de redução da letalidade policial.
“Nós reconhecemos que a questão da polícia, na maioria, é de responsabilidade dos governos dos estados, mas temos identificado e falado já há algum tempo que existe uma necessidade do governo federal fazer muito mais, de liderar realmente com alguns esforços a segurança pública”, defende.
Essa ação federal passaria pela incorporação de protocolos e parâmetros internacionais em relação ao uso de força e também na investigação de mortes causadas pela polícia.
Colocar em prática o que pede ONU, exemplifica Andrea, é fortalecer a ação de unidades como o Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp), do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP). Mas é possível ir além.
A proposta dos pesquisadores é que as investigações de mortes causadas por agentes do Estado sejam conduzidas por um órgão externo às polícias. Hoje, a investigação está a cargo da Polícia Civil. “Nós acreditamos que o Ministério Público teria o papel de liderar essas investigações”, sustenta Andrea.
‘Padrão mais amplo e ameaçador’
Os pesquisadores da ONU concluíram que, no Brasil, estereótipos raciais exercem papel recorrente na representação de quem é perigoso para a sociedade. “O racismo sistêmico cria associações nocivas e falsas da negritude com a criminalidade e a delinquência”, diz o texto.
Como exemplo, o relatório cita o incidente ocorrido em julho deste ano em que os filhos adolescentes de diplomatas foram abordados à mão armada por policiais no Rio de Janeiro. O trio era negro. Além deste caso, o Mecanismo demonstrou preocupação com múltiplos casos de assassinatos de pessoas negras e pobres por forças policiais, como a chacina do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, e a Operação Escudo, em São Paulo.
A ONU rejeita a teoria da “maçã podre”, usada para justificar essas ações. Essa justificativa sugere que a discriminação racial no policiamento é resultado de um pequeno grupo de policiais ou de casos isolados não relacionados. “O comportamento abusivo de policiais faz parte de um padrão mais amplo e ameaçador, conectado a contextos sociais, históricos, culturais e estruturais mais amplos, inclusive o racismo sistêmico, conforme explicado acima, dentro do qual o policiamento se dá”, registra o texto.
Apesar do tom crítico, o relatório também reconhece políticas recentemente adotadas pelo governo brasileiro no combate ao racismo sistêmico. Entre elas, as cotas para afrodescendentes na administração pública federal, a criação do Ministério da Igualdade Racial e o plano “Juventude Negra Viva”, da pasta.
No entanto, a ONU ressalta que essas boas práticas precisam ser fortalecidas e replicadas. “Será necessária uma multiplicidade de recursos sustentáveis ao longo do tempo para que essas boas práticas tenham um impacto duradouro na vida das pessoas afrodescendentes no Brasil”, conclui o relatório.
O Movimento Independente das Mães de Maio participou na construção do relatório da ONU. Débora Maria da Silva, líder das Mães, conta que parte das recomendações englobam o que foi consolidado pelo movimento no PL 2.999/2022.
O projeto de lei institui o Programa de Enfrentamento aos impactos da violência institucional, que estabelece atenção social integral.
Débora, no entanto, critica a inação do governo brasileiro diante de outras recomendações já feitas pela Organização. “Nada que a ONU recomenda, o Brasil acata”, diz.
Ela lembra da frase de Tarcísio de Freitas (Republicanos) diante das mortes promovidas pela polícia no Litoral de São Paulo na Operação Verão. Entidades de Direitos Humanos denunciaram as violações na ONU e foram respondidas com desdém pelo governador de São Paulo.
“Sinceramente, nós temos muita tranquilidade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”, disse o governador.
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