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Por Valter Mattos da Costa*

Recentemente, meu artigo sobre a deportação de brasileiros dos Estados Unidos, publicado aqui no Portal ICL no último domingo (“Brasileiros acorrentados são expulsos do sonho americano”), gerou certo debate. Alguns apontaram que práticas semelhantes ocorreram em administrações anteriores, inclusive de democratas, como as de Barack Obama e Joe Biden, e que o uso de algemas e correntes segue protocolos estabelecidos na terra do Tio Sam. Reconheço esses fatos históricos; contudo, meu argumento vai além da mera constatação dessas práticas — o buraco é mais em baixo.

O que distingue as ações do atual governo de Donald Trump é a intensidade da desumanização (ele afirmou que quer deportar mil e quinhentos imigrantes ilegais por dia!), acompanhada por uma retórica abertamente preconceituosa contra latino-americanos, principalmente. Trump frequentemente retratou esses imigrantes como criminosos (segundo ele, assassinos, estupradores, assaltantes, traficantes etc.), ignorando que a maioria são trabalhadores em busca de melhores condições de vida. A retórica inflamatória e as políticas de tolerância zero contribuíram para um ambiente de hostilidade e discriminação.

Além disso, a imagem de brasileiros algemados e acorrentados, nos pés e na cintura, ao desembarcarem em Manaus, em solo brasileiro, é particularmente perturbadora. Essa cena simboliza uma extensão da soberania norte-americana além de suas fronteiras, desrespeitando a dignidade humana em território estrangeiro. Tal ação deveria ter sido contestada pelas autoridades brasileiras, possivelmente até com a detenção dos agentes responsáveis, por violarem direitos fundamentais em solo nacional (deveriam ter recebido voz de prisão e deportados para o seu país).

Para aprofundar um pouco mais essa análise, recorro mais uma vez ao livro “Enterrem meu coração na curva do rio” (1970), do historiador estadunidense Dee Brown. A obra detalha como, no século 19, o governo dos Estados Unidos implementou políticas sistemáticas de remoção e extermínio de populações indígenas (os primeiros habitantes daquele território — logo, os primeiros invasores foram os colonos ingleses do século 17), justificadas por uma ideologia de superioridade e direito divino à terra — “Manifest Destiny”, utilizada por Trump para embasar seus argumentos xenófobos.

"Progresso Americano" (1872), de John Gast.

“Progresso Americano” (1872), de John Gast

Essas ações foram acompanhadas por narrativas que desumanizavam os nativos, retratando-os como obstáculos ao progresso.

Essa lógica de desumanização e dominação persiste nas políticas migratórias contemporâneas. Os imigrantes são frequentemente vistos não como indivíduos com histórias e aspirações, mas como ameaças à ordem estabelecida. A utilização de algemas e correntes não é apenas uma medida de segurança; é uma manifestação simbólica de controle e subjugação, reforçando a ideia de que esses indivíduos são perigosos e indignos de compaixão — ele quer nos mandar um recado, e vamos nos calar?

O filósofo italiano Roberto Esposito, em “As pessoas e as coisas”, de 2014 (publicado no Brasil em 2016), explora (vou simplificar ao máximo) a relação entre seres humanos e objetos, questionando a clássica diferencial que coloca as pessoas como sujeitos e as coisas como objetos passivos. Esposito argumenta, entretanto, que essa separação é artificial e que, na prática, muitas vezes tratamos pessoas como coisas, especialmente em contextos de poder e dominação — pois o corpo humano estaria situado entre a categoria de pessoa e coisa. Sendo assim, a reificação do ser humano transforma indivíduos em objetos manipuláveis, desprovidos de agência e dignidade.

Aplicando essa perspectiva às políticas migratórias, podemos ver como os imigrantes são frequentemente “coisificados”, reduzidos a números, estatísticas ou problemas a serem resolvidos. As algemas e correntes materializam essa redução, transformando seres humanos em corpos a serem controlados e deslocados conforme a conveniência dos Estados.

Pode-se dizer que esse “sentimento” — a ideia de que algumas pessoas podem ser tratadas como objetos, como resultado extremo da racionalização que separa o homem das coisas — acaba funcionando como uma espécie de desculpa inconsciente (ou deliberada) para a manipulação e dominação do homem sobre outro homem, resultando na reificação do corpo humano. Trata-se de uma prática histórica que encontramos, por
exemplo, na Alemanha nazista. Mas, ao ver brasileiros pobres desembarcando acorrentados em Manaus, não consigo evitar a lembrança dos seres humanos vindos da África, chegando aqui acorrentados para serem escravizados.

Portanto, minha crítica não se limita à condenação de uma administração específica, mas visa expor uma lógica mais profunda de desumanização que permeia as políticas migratórias. Embora reconheça que práticas semelhantes ocorreram em governos anteriores, a combinação de retórica inflamada e ações desumanizantes nesta administração trumpista, de extrema direita, intensificou essa lógica, tornando-a mais visível e, por conseguinte, mais passível de crítica.

É imperativo que questionemos não apenas as políticas em si, mas também as falas e posturas e ideologias que as sustentam. Devemos desafiar a tendência de “coisificar” o outro, reconhecendo a humanidade compartilhada que transcende fronteiras e categorias impostas (no artigo anterior, em resumo, defini as fronteiras dos Estados nacionais como não naturais — resultados de relações de poder etc.). Somente assim poderemos avançar em direção a uma sociedade mais justa e compassiva, onde indivíduos não sejam tratados como objetos descartáveis, mas como seres humanos dignos de respeito e empatia.

*Professor de História, especialista em História Moderna e Contemporânea e mestre em História social, todos pela UFF, e doutor em História Econômica pela USP

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