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Andrea Dip

Jornalista investigativa e estudante de psicanálise. Autora do livro-reportagem “Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder". É pesquisadora na Freie Universität de Berlim e apresenta o podcast Pauta Pública na Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

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‘Uma campanha 100% antifascista’: a ressurreição do Die Linke no parlamento alemão

Integrantes do Die Linke contam à coluna sobre a campanha que fez o partido aumentar seus números de forma decisiva
26/02/2025 | 07h22
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Saí ressabiada de casa no sábado (22), para cobrir o último comício da AfD (partido de extrema direita alemão), em frente a um shopping no subúrbio de Berlim. As eleições mais decisivas dos últimos tempos para o país aconteceriam no dia seguinte.

Fui preparada para ouvir as terríveis pautas de sempre: deportação em massa de imigrantes, elogios a Trump e Elon Musk, o orgulho da pátria, a defesa de que a Alemanha deve deixar a zona do euro e toda a cartilha neofascista.

Chegando lá, fui surpreendida positivamente. Não pela AfD, é claro. Os discursos foram exatamente o que previ.

Mas um protesto antifascista cercava o comício por dois lados, tinha mais pessoas que o evento da AfD e fazia tanto barulho, entre apitos, tambores e gritos de “Toda Berlim odeia a AfD” e “Nazis vão pra casa” que Beatrix von Storch, membra da ala mais radical do partido tinha que gritar no microfone para ser ouvida. “Não deem ouvidos a esses malucos” repetia a parlamentar, neta de um ministro nazista e amiga da família Bolsonaro, para homens brancos segurando bandeiras da Alemanha.

Não era possível. Os “malucos” estavam gritando mais alto. Em tempos tão sombrios com o levante da extrema direita no mundo e de tanta desesperança no futuro, a cena me comoveu. Assim como o grande número de jovens e o grande números de mulheres com mais de 70 anos empunhando bandeiras antifascistas.

No dia seguinte, os resultados das eleições seguiram mais ou menos como o esperado: o partido conservador CDU/CSU ganhou a maioria dos assentos no parlamento e Friedrich Merz será provavelmente o novo chanceler da Alemanha em coalizão ainda em negociação (se quiser entender melhor o sistema político alemão, explico aqui).

Friedrich Merz. (Foto: Reuters)

A AfD levou 20,8% dos votos e será a segunda força política no parlamento, com 152 cadeiras. O partido comemorou a maior vitória desde sua fundação em 2013 e ganhou sobretudo na Alemanha oriental. Mas não vai governar: desde o fim da Segunda Guerra Mundial existe um pacto entre os partidos políticos alemães de não fazerem coalizão com a extrema direita, formando o “Brandmauer” ou, em português, “cordão sanitário”. E Merz prometeu não quebrar o pacto. A ver.

O resultado final puxa ainda mais a política da Alemanha para a direita. Mas assim como no evento de sábado, também traz uma grata surpresa: A ressurreição do partido de esquerda socialista Die Linke, que, segundo pesquisas, poderia não alcançar os 5% de votos e deixar de vez o parlamento.

Não foi o que aconteceu. Em uma reviravolta histórica, o Die Linke ficou com 8,77% dos votos e vai ocupar 64 cadeiras de resistência. Mais importante: foi o partido mais votado entre jovens de 18 a 24 anos e viu um aumento de 17 pontos em relação à eleição federal de 2021.

Durante boa parte da campanha em janeiro, o Die Linke se manteve próximo ao limite crítico de 5% nas intenções de voto. No entanto, os números começaram a crescer rapidamente, especialmente após a viralização de um vídeo em que a candidata principal, Heidi Reichinnek, criticava a escolha de Merz de se aliar à AfD em uma votação sobre migração no fim do ano passado. Já conhecida por sua forte presença digital, o vídeo consolidou Reichinnek como uma voz confiável da esquerda contra qualquer aproximação com a extrema direita.

Mas o crescimento do Die Linke não foi só fruto de trabalho online. A campanha do Die Linke transmitiu uma imagem coesa e bem planejada, com foco em pautas como moradia acessível, ampliação da habitação social e redução dos custos de alimentação e transporte público.

O partido também intensificou as estratégias nas ruas e bateu em mais de 600 mil portas para explicar suas propostas e sobretudo para ouvir as pessoas, como explicam duas membras do partido ouvidas pela coluna. Como resultado, o número de membros também aumentou, hoje o partido tem mais de 100 mil afiliados.

Fanni Stolz, que fez parte da campanha de votação em Berlin, diz que a visita domiciliar foi uma grande ação, que fez toda a diferença. “Não foi apenas em Berlim, Munique ou Hamburgo. Fizemos isso em todas as cidades. Em toda a Alemanha, pessoas do partido de esquerda percorreram seus bairros, suas cidades e conversaram com as pessoas, ouviram seus problemas.

Nesta campanha, o partido de esquerda decidiu colocar três pontos principais: Lutar por moradia justa e por um teto de aluguel; o segundo tópico foi o aumento dos preços no supermercado porque os preços estão cada vez mais altos; e uma coisa que Jan van Aken [co-líder do partido] fez muito bem, na minha opinião, foi dizer: ‘Chamo-me Jan van Aken e acho que não deveria haver milionários’. Fizemos uma campanha que continua a ser construída de baixo para cima, com base em preocupações sociais e claramente 100% antifascista”.

Ela acrescenta: “mais importante do que falar, é ouvi-los e levá-los a sério e penso que, claro, foi um trabalho ao longo dos últimos três meses, mas também foi um trabalho ao longo dos últimos anos. Para o futuro, levaremos os problemas das pessoas normais a sério, levaremos os seus problemas para o parlamento e somos a oposição antifascista no parlamento”

Anika Taschke, consultora sobre o neonazismo na Fundação Rosa-Luxemburgo (Fundação parceira do Die Linke), concorda com a análise: “Vários fatores são importantes: depois de se separar de Sahra Wagenknecht, o partido conseguiu se reposicionar, recuperar a credibilidade e deixar de lado os conflitos internos. Além disso, ele se concentrou em duas questões principais: justiça social e políticas de moradia/aluguel.

O Die Linke também desenvolveu uma nova estratégia de mídia social, expandindo maciçamente sua presença no Instagram e no TikTok. Aparecia com apenas 3% nas intenções de votos e era alto o risco de o partido não ser mais representado no Bundestag. Essa situação crítica fez com que muitas pessoas percebessem a importância que um partido de esquerda pode ter e o desafio era conseguir 5%”.

Para além da campanha de porta em porta, que destaca como muito importante, Anika diz que no episódio recente em que Friedrich Merz votou junto com a AfD a moção para endurecer a imigração e gerou grande revolta na população, o Die Linke se posicionou como uma salvaguarda antifascista, e isso o beneficiou.

Para o futuro, ela diz que é crucial que o partido de esquerda continue desempenhando esse papel: “O Bundestag alemão tem uma forte maioria de políticos conservadores e de direita, o que torna a proteção dos direitos das minorias, dos direitos fundamentais e de um antifascismo social mais importante do que nunca. Para o Die Linke, isso significa manter a credibilidade e atuar como uma oposição social unida no parlamento”.

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