Por Isabel Seta — Agência Pública
No último 7 de novembro, a advogada Maíra Pankararu, primeira indígena a participar da Comissão de Anistia, saiu emocionada da estreia de “Ainda estou aqui”. “Fico muito agradecida, porque ainda são poucos os que discutem o que foi a ditadura para nós, povos indígenas”, disse Pankararu à Agência Pública.
O filme recém-indicado ao Globo de Ouro e que, há poucos dias, se tornou a maior bilheteria do cinema brasileiro no pós-pandemia, conta a busca de Eunice Paiva pelo reconhecimento do assassinato de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, pela ditadura militar. Mas, entre as várias batalhas que marcaram a trajetória de Eunice, o filme do diretor Walter Salles destaca também sua atuação como uma das raras advogadas na época especializadas em direito indígena.
Entre 1964 e 1985, período definido por Pankararu como um “banho de sangue” para os povos indígenas, o governo militar perseguiu, expulsou milhares de suas terras e colocou dezenas em campos de trabalho forçado e prisões.
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) estimou que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos no período — “em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão”. O número, aterrador, se refere a apenas dez povos estudados pela CNV — são 305 no Brasil. Desaparecidos e mortos políticos, caso de Rubens Paiva, foram 434, conforme a CNV.
“A gente ainda não tem noção sobre o que aconteceu com os povos indígenas na ditadura”, afirma Pankararu.
Foi nessa época brutal que Eunice se especializou na defesa jurídica dos povos indígenas, assinando pareceres judiciais, buscando indenizações e demarcações de terras, publicando artigos e livros e contribuindo para as discussões que resultariam no capítulo “Dos índios” da Constituição Federal de 1988.
“Eunice é de uma expressão tão grande que é impossível contar a história do movimento indígena nos anos 70 e 80 sem fazer referência à contribuição dela, tanto do ponto de vista jurídico quanto do ponto de vista humanitário”, afirmou o líder, ativista e escritor Ailton Krenak em entrevista à CBN.
O foco de Ainda estou aqui, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, é a batalha de Eunice para que o governo ditatorial reconhecesse o que fez com seu marido, levado por policiais à paisana em janeiro de 1971 para nunca mais retornar.
Mas, ao mencionar a dedicação posterior dela ao direito indígena, o longa abre um caminho para que outra memória coletiva seja também recuperada.
“O direito à memória e à verdade é o direito à nossa identidade, o direito de sanarmos as nossas feridas e esses traumas que se tornaram intergeracionais”, resume Daiara Tukano. Artista e mestre em direitos humanos, Tukano também viu no filme um convite para que as pessoas se somem à luta dos povos indígenas e conheçam as histórias daqueles que Eunice defendeu — entre eles, os Pataxó, da Bahia; os Zoró, do norte de Mato Grosso; os Kayapó, do Xingu; e os Yanomami, de Roraima.
Eunice e a causa indígena
Dois anos depois de Rubens Paiva ter desaparecido nos porões do DOI-Codi, no Rio de Janeiro, Eunice voltou para São Paulo com a família e entrou na faculdade de Direito. Os estudos lhe deram mais ferramentas para buscar justiça para o seu e para outros casos de desaparecidos políticos, lutar pela redemocratização do país e entrar na causa indígena.
“A minha mãe tinha uma vida incrível, porque ela ficou viúva aos 41 [anos], com cinco filhos, se formou em direito e virou uma militante muito intensa com relação à anistia, redemocratização, Diretas-Já, Constituinte. Ela começou com o direito de família, mas depois se especializou em direito indígena. Ela era uma das pouquíssimas especialistas em demarcações de terras indígenas e passou a ser requisitada”, contou Marcelo, filho de Eunice e Rubens, em entrevista a Drauzio Varella, em 2016, meses após ter lançado o livro.
Em 1987, ela foi uma das fundadoras do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (Iamá) , organização não governamental que colaborou para a criação de vários projetos de saúde, educação e política para povos indígenas, na qual atuou até 2001.
No final da década de 1980, Eunice trabalhou também no conselho consultivo da Fundação Mata Virgem, que geria, no Brasil, os recursos de uma organização fundada pelo músico Sting — convertido definitivamente à causa indígena após ter feito uma turnê mundial ao lado do líder Raoni Metuktire para angariar fundos para a demarcação da Terra Indígena Menkragnoti, dos Kayapó, no Xingu, homologada em 1993.
Antes disso, ainda na ditadura, Eunice participou da Comissão Pró-Índio de São Paulo, grupo fundado por antropólogos em 1978 como reação à tentativa do governo militar de alterar a lei para separar os indígenas em dois grupos: aqueles que seguiam suas “tradições” e, portanto, ainda precisavam ser “tutelados” pelo Estado; e aqueles que tinham se “emancipado” por terem se “aculturado”.
A divisão arbitrária não passava de uma manobra para retirar do segundo grupo o direito à terra — reconhecido desde o tempo do Brasil Colônia e protegido pelas constituições desde 1934. A estratégia não passou despercebida.
“Essa questão de ‘emancipar’ os índios, que era o termo usado, mobilizou a sociedade civil de um modo incrível, porque foi, digamos, o modo de expressar resistência e repúdio à ditadura no fim da década de 1970, quando a oposição estava muito subjugada”, lembra a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, uma das fundadoras da Comissão Pró-Índio e referência em Antropologia no país.
A demarcação de terras indígenas se tornou uma palavra de ordem, estampada até em adesivos colados nos automóveis de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, contou a antropóloga.
Naquela época, o ordenamento jurídico do país considerava os indígenas como “relativamente capazes” (mesmo status das mulheres casadas). Assim, eles não podiam fazer negócios, celebrar contratos e entrar com ações judiciais, prerrogativas reservadas ao “tutor” — representado, primeiro, pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, depois, pela Fundação Nacional do Índio (Funai), criada em 1967.
Funai militarizada e a disputa pela terra
Só que a própria Funai, militarizada, era “o inimigo dos indígenas”, explica Carneiro da Cunha, retratada no filme ao lado de Eunice em uma cena de uma aula ministrada por elas na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. “Isso fazia com que, na realidade, eles não tivessem acesso à Justiça de forma autônoma.”
Em 1983, as duas assinaram um artigo no jornal Folha de S.Paulo denunciando como a Funai havia agravado o conflito fundiário enfrentado pelos Pataxó do sul da Bahia. Pressionado pelo governo estadual, o órgão que deveria defender os indígenas atuou para remover e dividir a população, deixando-a exposta à violência da Polícia Militar e de fazendeiros.
“Nesta situação, a quem recorrer?”, questionam. “Sejamos claros: a Funai, supondo mesmo que quisesse cumprir seu papel, está atrelada a um sistema no qual os direitos indígenas são a última das preocupações.”
A Comissão Pró-Índio de São Paulo era justamente uma entidade a que os indígenas podiam recorrer, uma organização “para-raio” de conflitos, como define Márcio Santilli, fundador do Instituto Socioambiental (ISA) e presidente da Funai entre 1995 e 1996.
“Indígenas que sofriam processos complicados de violência, tomada de terras, recorriam à Comissão [Pró-Índio] para ter algum tipo de apoio, nem que fosse no plano da denúncia desses fatos. Era um período em que havia pouca gente com formação que pudesse ajudar”, conta.
Eunice era uma dessas pessoas, assim como os juristas Dalmo Dallari (1931–2022), referência em teoria do estado, e Carlos Marés, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Na época, eles desempenhavam o papel que mais tarde seria delegado ao Ministério Público Federal (MPF) pela Constituição de 1988.
“Quando você vê alguém falando que o Ministério Público denunciou, entrou com ação, fez não sei o quê, a Eunice Paiva já fazia isso antes do Ministério Público existir”, disse Krenak à CBN.
Em 1986, Eunice escreveu um parecer fundamental para a demarcação da Terra Indígena Zoró, reconhecida no ano seguinte. Contatados oficialmente em 1977, os Zoró viram sua população se reduzir drasticamente após uma série de surtos epidêmicos trazidos pelos invasores que seguiam o asfaltamento da BR-364 (entre Cuiabá e Porto Velho).
“Os direitos dos índios à posse de suas terras são direitos intransponíveis e que não podem ser negociados, inexistindo qualquer impugnação válida capaz de anular, restringir, extinguir ou modificar os direitos da comunidade Zoró sobre a terra que é seu habitat natural”, escreveu Eunice como avaliadora do impacto do Programa Polonoroeste para os indígenas.
A pavimentação da rodovia entre as capitais de Mato Grosso e de Rondônia foi uma das principais ações do Polonoroeste, criado pelo governo João Figueiredo em 1981, financiado por empréstimos de milhões do Banco Mundial e devastador para os povos indígenas dos dois estados.
Ditadura: grandes obras e violência
Com seus programas de “integração” e grandes obras de infraestrutura, como as rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém, a ditadura exacerbou a opressão, em todos os níveis, contra os indígenas, deixando um legado de violações nunca reparado.
Na raiz dessa violência, que também se perpetua até hoje, estava o direito à terra, classificado por Eunice como o “mais valioso” para os indígenas. Em um livro de 1985, escrito com a antropóloga Carmen Junqueira, ela lembra que o Estatuto do Índio, de 1973, havia dado cinco anos para a Funai demarcar todas as terras indígenas. O prazo havia se esgotado sem que as áreas demarcadas atingissem um terço do total.
“Parece-me que o problema da terra, no Brasil, hoje, é um problema crucial. Observamos uma verdadeira corrida para o oeste, no sentido da ocupação do território, estimulada, inclusive, pelo próprio governo, no sentido da defesa desses territórios contra eventuais invasores estrangeiros. Enfim, essas coisas que os militares muito enfatizaram”, disse ela durante uma reunião da Comissão Pró-Índio em 1986.
“Acho que o problema da terra, indígena ou não, deveria ser tratado de forma harmoniosa, estabelecendo quais são os direitos indígenas e os outros organismos se adequarem a isto. E não o contrário. A adequação tem sido feita com prejuízo dos direitos das terras indígenas”, afirmou.
No livro “O Estado contra o índio”, publicado em 1985, Eunice e Carmen se debruçam sobre décadas de documentos estatais para reconstituir todo o tratamento dado, ao longo da história legislativa brasileira, aos indígenas e ao direito deles à terra. Na obra, elas criticam a política indigenista e denunciam as seguidas violações de direitos humanos.
Para as autoras, um dos sintomas da “discriminação racial” e “violação aos direitos humanos” enfrentadas pelos indígenas estava na falta de apuração e solução dos crimes cometidos contra as comunidades. Elas listam, então, 15 assassinatos entre 1975 e 1983 que ficaram “sem solução”. Entre eles o do líder guarani Marçal de Souza, que chegou a participar de reunião da Comissão Pró-Índio e foi morto por pistoleiros em Campestre, em Antônio João, no Mato Grosso do Sul.
Em um desses prolongamentos da história, até hoje fazendeiros disputam áreas indígenas no estado, em um conflito fundiário violento que, há anos, deixa mortos e feridos. Recentemente, em setembro, também em Antônio João, o jovem Neri Guarani Kaiowá foi morto a tiros durante uma ação da Polícia Militar contra a retomada dos indígenas em uma fazenda, segundo informações do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
O caminho para a Constituição de 1988
“Essas pessoas que tomaram o front nesse período [da ditadura] tinham que tirar leite de pedra para conseguir fazer a defesa dos povos indígenas com os instrumentos precários que existiam”, afirma Santilli.
Para Manuela Carneiro da Cunha, esse trabalho realizado pela Comissão Pró-Índio deixou um “enorme legado” para a pesquisa acadêmica e para a formulação jurídica dos artigos da Constituição de 1988 — como o revolucionário texto do artigo 231, que sacramentou o conceito de “direito originário”, recuperado pelo trabalho do grupo.
Os advogados que atuavam na Comissão Pró-Índio foram importantes também em uma das grandes batalhas da Constituinte: o debate sobre mineração em terras indígenas. Segundo Ailton Krenak, advogados como Eunice, Dalmo Dallari e Carlos Marés aconselharam as lideranças envolvidas nas discussões a impedir a autorização ao garimpo no texto constitucional.
Eunice já conhecia o problema por sua atuação como advogada da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), área invadida por milhares de garimpeiros no final da década de 1980, estimulados pelas seguidas investidas do governo e de parlamentares para autorizar a exploração de cassiterita na região. O chamado “ouro negro”, usado na fabricação de vidros e de latas e, atualmente, até de telas de celulares, ainda hoje é extraído ilegalmente da Terra Indígena Yanomami.
Além de preparar o caldo jurídico para a Constituinte, a Comissão Pró-Índio de São Paulo também teve um papel relevante ao reunir líderes indígenas que se tornaram referências para o movimento indígena, como o próprio Krenak, Raoni, Marcos Terena, Álvaro Tukano, entre outros.
“Eles foram apoiadores importantes ao promover esses encontros das lideranças que construiriam as propostas para os nossos direitos na Constituinte, a presença indígena dentro dos espaços democráticos do país”, diz Daiara Tukano, filha de Álvaro. Na história pessoal da família da artista, Eunice é lembrada também por ter assinado um parecer para que o cartório de Pinheiros, em São Paulo, aceitasse registrar Daiara como Daiara Hori, em uma época em que nomes indígenas não eram aceitos.
A representação indígena era uma das preocupações da advogada, que já em 1985 apontava como “defeito grave” na concepção da Funai a ausência de indígenas nos quadros do órgão.
Quase 40 anos depois, ela provavelmente ficaria satisfeita em ver Joenia Wapichana na presidência do órgão. Além de um movimento indígena fortalecido, representado juridicamente por suas próprias organizações, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
“Tem agora um movimento indígena tanto de mulheres quanto de homens que é nacional, e isso é de extrema importância”, afirma Manuela Carneiro da Cunha.
“Lembrar da Eunice também é agradecer e celebrar o trabalho de todos aqueles que foram nossos parceiros e continuam de pé do nosso lado”, diz Daiara. “Eu fiquei muito tocada que ela resolveu virar advogada para construir justiça em um momento em que a maior parte da nossa população não tinha condições para isso. Hoje nós temos nossos advogados, nossos professores, nossos doutores, mas precisamos que todos conheçam essa parte da história, que é uma história coletiva, a história de um país.”
Maíra Pankararu faz coro: “A memória dessas violências não é uma memória só dos povos que as sofreram. É uma memória da sociedade brasileira, que precisa entender o que foi a ditadura para os povos indígenas, para daí entender o que de fato foi a ditadura como um todo”.
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