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O Brasil é um país angustiante e toda a aflição que ele causa está profundamente relacionada com a sua vocação para a negação. A insistente tentativa de apagamento das dores do passado e do presente, impossibilitando a solução de questões terríveis que emperram o futuro. Não há quem tenha o mínimo de honestidade intelectual que negue este fato, mas que também não veja uma retomada, uma busca por acertos com a história de algumas instituições e setores importantes da sociedade brasileira. Falta muito, um caminho longo demais… mas o ano de 2024 vai terminando com algumas lufadas de ar. A ver.
Para além de todas as tramas golpistas descobertas recentemente, saídas das sombras mais tenebrosas, herança das três décadas da ditadura civil-militar no país, estão instituições que vão resistindo. Poderíamos hoje estar no fundo de um poço de onde escapamos há muito pouco tempo. Ver generais e gente graúda pega em sua estupidez arrogante e brutal da certeza absoluta da impunidade é um sabor, mas confesso o meu ceticismo se chegaríamos até aqui ainda numa democracia, mas cá estamos e dispostos a não deixar esta sujeira debaixo do tapete da história.
O sucesso do filme “Ainda estou aqui” é uma mensagem muito exata e auspiciosa de que estávamos apenas esperando um convite contundente para liberar esta dor represada que foi ter tanta gente morta, famílias arruinadas, uma geração mutilada e com sequelas graves de um período nefasto que não pode se repetir jamais. É como se multidões dissessem “nós escolhemos lembrar”.
Esta semana, no dia em que se comemorou os 76 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (10), o Conselho Nacional de Justiça, o órgão que trabalha para aperfeiçoar o judiciário brasileiro; regulamentou o dever de reconhecer e retificar o assento de óbito de todos os mortos e desaparecidos vítimas da ditadura militar, reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade. Na causa mortis destas certidões constará: “morte não natural, violenta, causada pelo Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política, no regime ditatorial instaurado em 1964”.
Em se tratando de Brasil, um avanço sem precedentes. Uma iniciativa proposta pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e acatada de forma unânime pelo plenário do CNJ. A Ministra Macaé Evaristo usou uma palavra que é um anseio desesperado. “É pelo direito das famílias durante a ditadura militar que estamos dando um passo de cura (…)”.
Cura, algo que ainda soa impossível neste e em tantos contextos, mas que continua a ser perseguido com afinco. No mesmo desejo, outro passo importante foi dado quase simultaneamente, a Política Judiciária de Atenção às Comunidades Quilombolas, para garantir direitos no reconhecimento dos direitos de posse, propriedade e titulação de territórios tradicionais.
Estes são alguns exemplos, mas há outros. São muitos os sinais de alerta, de que por qualquer distração podemos outra vez sofrer com os métodos de infelicidade aperfeiçoados com competência ao longo de cinco séculos sangrentos de Brasil, mas há forças puxando para o lado contrário a esta sombra e não temos mais muito tempo para permanecer na inércia, apenas como expectadores da batalha.
O Brasil poderia surpreender as pessoas um tanto cansadas como eu e tratar de fechar esta fatura com os potenciais ditadores, não mais anistiando, escondendo, evitando que paguem pela dor incomensurável que causaram e causam. O Brasil poderia, para variar, fazer justiça.
É hora. Passou da hora.
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