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A verdade sobre Rubens Paiva e sua morte na ditadura militar

A ditadura militar calou Rubens Paiva, mas não apagou sua história. Conheça o que ele fez e por que se tornou alvo do regime.
24/01/2025 | 15h54

No que você pensa ao imaginar uma família feliz nos anos 70? Crianças brincando na rua, adultos se divertindo, encontrando amigos, ouvindo música e conversando sobre amenidades, um almoço farto e cheio de vozes de irmãos disputando o maior pedaço de sobremesa…

Agora, imagine-se como a mãe de uma dessas crianças que, um dia, viu seu pai sair pela porta e nunca mais voltar. E, ainda pior, nunca soube o que aconteceu com ele. Triste, não?

Essa é a realidade de muitos filhos de pessoas torturadas e mortas durante o período da ditadura militar no Brasil. Essa é a realidade do escritor Marcelo Rubens Paiva, de suas irmãs e foi a de sua mãe, Eunice Paiva.

O filme Ainda Estou Aqui, lançado em 2024 e indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional, Melhor Filme e Melhor Atriz em 2025, conta a história da luta de Eunice Paiva, advogada, professora universitária e ativista, que batalhou anos a fio pelo direito ao reconhecimento do que aconteceu com seu marido, o engenheiro e ex-deputado federal Rubens Paiva.

Afinal, por que Rubens Paiva foi preso pela ditadura? Por que Rubens Paiva foi torturado até morrer nos porões do DOI-CODI? O que um pai de família, conhecido pela população brasileira, morador da zona sul do Rio de Janeiro, poderia ter feito para sofrer um destino tão implacável e cruel? É o que vamos descobrir ao longo desta leitura.

Quem foi Rubens Paiva?

Rubens Beyrodt Paiva nasceu em 26 de dezembro de 1929, em Santos, São Paulo. Ele cresceu em uma família de classe média e, desde cedo, vivenciou as complexidades de um ambiente familiar marcado pela política e pelos desafios sociais. Seu pai, Jaime de Almeida Paiva, advogado e figura política local, exerceu influência significativa em sua infância, embora os dois mantivessem uma relação conflituosa em temas relacionados à política.

Ainda jovem, Rubens demonstrou um forte interesse por questões sociais e políticas, participando ativamente de movimentos estudantis e campanhas de grande relevância, como a histórica “O petróleo é nosso”. Essa trajetória inicial refletia um senso de responsabilidade e engajamento que o acompanhariam ao longo de sua vida.

Formado em Engenharia Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Rubens iniciou sua carreira como engenheiro, mas foi na política que ele encontrou sua principal motivação.

Em 1962, foi eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). No Congresso, destacou-se pela defesa de temas que buscavam transformar o país, como a reforma agrária e a regulamentação do trabalho urbano e rural. Suas propostas focavam na redução das desigualdades e na criação de oportunidades para quem mais precisava.

Na CPI do Ibad, em 1963, Rubens Paiva (à esq.) e o deputado Benedito Cerqueira (à dir.)

Deputado Rubens Paiva (à esq.) e o deputado Benedito Cerqueira (à dir.) na CPI do Ibad, em 1963. Foto: Memorial da Democracia

Rubens Paiva era um político de diálogo. Ele acreditava que mudanças só poderiam acontecer com o envolvimento de diferentes setores da sociedade. Seu trabalho era guiado pela ideia de que as decisões políticas deveriam ser tomadas pensando no impacto para a maioria, principalmente para quem enfrentava mais dificuldades.

O início da perseguição

Em 1964, o golpe militar interrompeu a democracia brasileira, destituindo o presidente João Goulart e instaurando um regime autoritário. Rubens Paiva teve seu mandato cassado, viu seus direitos políticos serem retirados e precisou se exilar para fugir da repressão.

Apesar disso, não se afastou da luta política. Rubens optou por enfrentar as dificuldades e se manteve ativo, buscando formas de resistir ao regime autoritário que havia se instalado no país. Durante o exílio, Rubens Paiva entrou em contato com outros brasileiros que também haviam sido forçados a sair do país.

Ele se dedicou a denunciar os abusos da ditadura e a buscar apoio internacional para o restabelecimento da democracia no Brasil. Seu trabalho fora do país reforçou seu compromisso com a justiça e a liberdade, mesmo longe de casa.

Grupo de exilados na Embaixada da Iugoslávia, em 1964; entre eles, Rubens Paiva (3° da dir. para a esq.); o secretário de imprensa de João Goulart, Raul Ryff (de cabelos e bigode branco, ao centro), e Almino Affonso (2° da esq. para a dir.). Foto: Memorial da Democracia

Quando retornou ao Brasil em 1965, Rubens encontrou um cenário ainda mais hostil, mas decidiu permanecer no país. Ele usou sua casa como ponto de apoio para ajudar pessoas perseguidas pelo regime.

Rubens organizava recursos e planejava formas de permitir que outros pudessem escapar da repressão. Essa escolha, mesmo sabendo dos riscos que corria, mostra a determinação do ex-deputado em contribuir com a luta por um Brasil mais justo e democrático.

Prisão, tortura e morte de Rubens Paiva

Em 20 de janeiro de 1971, Rubens Paiva foi preso por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA). Sua prisão aconteceu em sua residência, localizada na zona sul do Rio de Janeiro, e foi realizada sem qualquer mandado ou justificativa legal. Ele foi levado diretamente ao DOI-CODI, um dos principais centros de tortura do regime militar.

A violência do DOI-CODI

O DOI-CODI era mais do que um local de detenção. Era um espaço que simbolizava o terror imposto pelo regime militar. Rubens foi mantido sob custódia nesse local, onde práticas violentas e desumanas eram parte da rotina.

Ele foi submetido a sessões intensas de interrogatórios, nas quais métodos de tortura física e psicológica eram empregados para extrair informações ou simplesmente para impor medo e controle.

Relatos posteriores indicam que Rubens enfrentou choques elétricos, espancamentos e ameaças constantes. Esse tipo de tratamento era aplicado a qualquer um considerado opositor do regime, mesmo que não houvesse evidências concretas de participação em atividades consideradas subversivas.

O silêncio imposto pela ditadura

Poucos dias após sua prisão, Rubens Paiva morreu em decorrência da violência que sofreu. Sua morte foi cercada por mentiras e tentativas de ocultação. A versão oficial divulgada pelo regime dizia que ele havia sido sequestrado por militantes enquanto estava sob custódia, mas essa história se revelou uma farsa ao longo do tempo, graças a testemunhos e investigações como as da Comissão Nacional da Verdade, realizada anos depois.

A família de Rubens passou décadas convivendo com a ausência de respostas concretas e com o peso de uma perda violenta e injusta. A forma como o caso foi conduzido ilustra o nível de autoritarismo e opressão que marcou aquele período no Brasil.

“O que aconteceu com Rubens Paiva não foi apenas um crime contra a nossa família, foi um crime contra a democracia e o direito à verdade.”

Marcelo Rubens Paiva, em conversa exclusiva para o ICL.

O esforço para esconder o que realmente aconteceu com Rubens Paiva não foi apenas uma tentativa de apagar um crime, mas também de silenciar sua memória e o que ele representava para a luta democrática.

Busto de Rubens Paiva na Praça Lamartine Babo na Tijuca, ao fundo Batalhão da Polícia Militar Foto: Marcelo Piu / Agência O Globo

Busto de Rubens Paiva em frente ao antigo DOI-Codi na Praça Lamartine Babo na Tijuca, Rio de Janeiro. Foto: Marcelo Piu / Agência O Globo

Por que Rubens Paiva foi morto?

Rubens Paiva nunca participou de movimentos armados nem planejou ações violentas contra o regime militar. Seu papel na oposição era feito com palavras, articulação e apoio às pessoas perseguidas pela ditadura.

Ele ajudava militantes oferecendo suporte logístico e financeiro, denunciava as violações de direitos humanos que estavam ocorrendo no Brasil e mantinha contatos no exterior para dar visibilidade à repressão praticada pelo governo.

“Rubens Paiva representava a resistência pacífica e a luta por direitos num período onde isso era suficiente para ser considerado uma ameaça.”

Marcelo Rubens Paiva, em conversa exclusiva para o ICL.

O que fez de Rubens Paiva um alvo foi sua coragem de se posicionar contra o regime. Ele era visto como uma ameaça por causa de sua habilidade em expor os abusos do governo e por sua atuação como relator de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigava o financiamento de grupos que apoiaram o golpe de 1964.

Essa investigação revelou ligações com dinheiro estrangeiro, expondo interesses que iam além das fronteiras brasileiras. Essas descobertas irritaram setores da elite e da máquina militar, tornando Rubens um nome incômodo para aqueles que buscavam manter o poder a qualquer custo.

Rubens não apenas incomodava pelo que fazia, mas também pelo que representava. Ele simbolizava a resistência pacífica e o comprometimento com valores democráticos em um período de censura e autoritarismo. A escolha de calá-lo foi um ato calculado, parte de uma estratégia de intimidação que visava não apenas atingir Rubens, mas também desmotivar outras pessoas que insistiam em desafiar o regime.

O papel de Eunice Paiva na luta por justiça

Eunice Paiva, advogada e esposa de Rubens, tornou-se um exemplo de resiliência e determinação na busca por respostas sobre o desaparecimento de seu marido.

Mãe de cinco filhos pequenos, ela enfrentou o silêncio e as intimidações de um Estado que se negava a reconhecer seus próprios atos. Eunice não apenas sobreviveu à violência emocional imposta pela ditadura, mas também transformou sua dor em força para lutar por justiça.

“Minha mãe, Eunice, enfrentou o silêncio de um regime que tentou apagar a memória do meu pai, e transformou essa dor em luta pelos direitos humanos.”

Marcelo Rubens Paiva, em conversa exclusiva para o ICL.

Com a redemocratização, ela ganhou destaque como defensora dos direitos humanos, com foco nos povos indígenas. Foi uma das primeiras vozes a trazer a público as histórias que a ditadura tentou apagar. Seu trabalho foi essencial para preservar a memória de Rubens Paiva e de outras vítimas, mantendo viva a luta por verdade e justiça.

A Comissão Nacional da Verdade e o reconhecimento oficial

Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade trouxe à tona a verdade sobre o destino de Rubens Paiva. O relatório confirmou que ele foi torturado e morto sob custódia do Estado. Sua certidão de óbito, anteriormente um símbolo do silêncio e da manipulação, foi alterada para registrar oficialmente que sua morte foi resultado das ações do regime militar.

Embora o reconhecimento tenha sido um passo importante, a responsabilização pelos crimes da ditadura ainda enfrenta barreiras legais. A Lei da Anistia, promulgada em 1979, impede que os responsáveis sejam levados à justiça. Para a família de Rubens Paiva e tantas outras, a ausência de punição permanece como uma ferida aberta na história do Brasil.

Rubens Paiva entre sua mulher, Eunice (à esq.), a sua mãe e os cinco filhos. Foto: Memorial da Democracia

Fake news e narrativas do regime

A ditadura militar no Brasil não se limitou à repressão física e política. Ela também investiu pesadamente na construção de narrativas falsas para justificar seus atos e enfraquecer a oposição. No caso de Rubens Paiva, uma das mentiras mais propagadas foi a de que ele teria sido sequestrado por militantes de esquerda.

Essa versão foi amplamente divulgada pelos canais de comunicação oficiais da época e por aliados do regime, com o objetivo de encobrir sua prisão e desaparecimento forçados. Décadas depois, documentos, investigações e testemunhos desmentiram essa história, comprovando que ele foi torturado e morto sob custódia militar.

Essa estratégia de manipulação e ocultação de crimes não ficou restrita àquele período. Hoje, vemos grupos utilizando métodos semelhantes, como a disseminação de fake news, para relativizar ou até negar os horrores do regime, mostrando como a luta contra a desinformação ainda é atual e necessária.

“O Brasil precisa ler mais, se informar mais e entender quem são as pessoas que escolhemos para nos representar, para que a história de 1964 e de 2018 não se repita.”

Marcelo Rubens Paiva, em conversa exclusiva para o ICL.

O legado de Rubens Paiva

Rubens Paiva representa um símbolo da resistência contra o autoritarismo e a brutalidade do Estado. Sua trajetória mostra que a luta pela democracia muitas vezes exige enfrentamento e resiliência em momentos de repressão.

O regime tentou silenciar sua voz, mas sua memória permanece através das ações de sua família e da história que não pode ser apagada. Eunice Paiva, sua esposa, transformou o luto em ativismo, dedicando sua vida à defesa dos direitos humanos e ao resgate da verdade sobre os crimes do regime. Já seu filho, Marcelo Rubens Paiva, transformou a dor em literatura, conectando gerações e iluminando os horrores da ditadura para que não se repitam.

O legado de Rubens Paiva vai além de sua atuação política: é um alerta sobre o preço que se paga quando a democracia é colocada em risco.

O que você pode fazer para honrar essa história?

A história de Rubens Paiva não é apenas uma memória do passado, mas um ponto de partida para entender o presente. As lições desse período não podem ser ignoradas. Aqui estão algumas formas de aprofundar essa reflexão e manter viva essa memória:

  • Informar-se: busque conhecer a trajetória de Rubens Paiva e de outras vítimas da ditadura. Entenda o impacto que o autoritarismo teve na vida de tantas pessoas e na história do Brasil.
  • Debater: converse sobre o tema com amigos, familiares e colegas. Traga esse debate para o cotidiano, seja na sala de aula, nas redes sociais ou em outros espaços.
  • Apoiar iniciativas de memória e justiça: valorize projetos que resgatam histórias de perseguição e luta por direitos humanos. O esforço por justiça não perde relevância, mesmo décadas depois.
  • Manter viva a memória: divulgue histórias como a de Rubens Paiva. Mostre às novas gerações o que aconteceu e como esses eventos moldaram o Brasil que conhecemos hoje.

Reprodução de reportagem originalmente publicada em 22 de outubro de 1978. Foto: Jornal do Brasil

O legado de Rubens Paiva não é apenas sobre resistência, mas sobre o valor da democracia e dos direitos humanos. Sua história continua a mostrar como é fundamental proteger esses princípios para que períodos de repressão e violência não se repitam.

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