O indiciamento do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado (e otras cositas más) é — além de fato inédito na História brasileira — uma oportunidade única para revisitarmos nosso passado autoritário. O Brasil — como já dissemos nesta coluna algumas vezes ao longo do último ano — é o país do golpe. Lembremos de alguns episódios marcantes.
Logo após a Independência (1822), Dom Pedro I convocou a “Assembleia Constituinte” de 1823. Uma vez reunida, a Assembleia elaborou a nossa primeira Carta Magna. No entanto, no dia 12 de novembro, num rompante autoritário, na chamada Noite da Agonia, as forças policiais de Pedro I dissolveram a Assembleia, prenderam opositores e deportaram dezenas de deputados constituintes, incluindo os famosos irmãos Andrada (José Bonifácio, Martim Francisco e Antônio Carlos), que haviam sido fundamentais ao processo de Independência. Pedro dava seus passos autoritários para outorgar a Constituição de 1824, que conferia a ele um poder a mais, o Poder Moderador.
Em 1840, quando “Liberais” e “Conservadores” (todos eles apoiadores da escravidão) disputavam a hegemonia política e o jovem Brasil vivia uma série de revoltas populares e separatistas, os Liberais, na ânsia de suplantar os “regressistas”, articulam um golpe de Estado “convidando” o menino Pedro II (com 14 anos) para assumir o trono antes da maioridade. Configurava-se então o chamado “Golpe da Maioridade”, em 23 de julho de 1840. O “Ministério da Maioridade” se instalou, ironicamente contando com a presença dos “antigos” Irmãos Andrada. Contudo, uma vez no poder, Pedro II dissolveu o Ministério e convocou um novo controlado por Conservadores, começava a longa hegemonia conservadora (e profundamente escravocrata) no Brasil Imperial.
Em 1889, diante de uma Monarquia Imperial em crise, um grupo de jovens oficiais com ideias republicanas e positivistas articula um golpe de Estado e, sob a liderança de um oficial veterano da Guerra do Paraguai — Marechal Deodoro da Fonseca — derrubam a monarquia brasileira, convidando Princesa Isabel (a regente do trono) e seu pai Pedro II a se retirarem do país. Era a “Proclamação da República”, no dia 15 de novembro, até hoje comemorada como feriado nacional. Os militares foram apoiados por uma nova hegemonia econômica, os fazendeiros que dominavam as plantações de café do Oeste Paulista. Depois de dois governos militares (Deodoro e Floriano) e muitas revoltas sufocadas, a oligarquia do café liderada por São Paulo passou a ter a hegemonia sobre a política nacional, mandando e desmandando no país até 1930. Contudo, o importante aqui é lembrar que o golpe militar que levou à República foi praticamente um golpe preventivo para que a elite política brasileira não fizesse a reforma agrária e não incluísse a massa de ex-escravizados (1888) que viviam no campo e nas cidades. Estávamos, portanto, diante da “República Liberal Excludente”.
Em 1930, diante das disputas entre as oligarquias dos vários Estados brasileiros, os paulistas foram derrubados por uma “Aliança Liberal” liderada por políticos do Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraíba e muitos militares, sobretudo tenentes, que clamavam pelo fim da “corrupção” da elite política paulista no poder. Dava-se então a chamada “Revolução de 1930.” Movimento armado liderado por Getúlio Vargas, a “Revolução” (chamada pelos paulistas de golpe) venceu em outubro de 1930, tendo Vargas assumido o poder como chefe do governo provisório em 3 de novembro. Começava então a chamada “Era Vargas”. A despeito de uma série de medidas próprias do Estado Democrático de Direito, como a Constituição de 1934, em 1937 — alegando, entre outras coisas, o perigo do comunismo — Vargas manda fechar o Congresso Nacional no Rio de Janeiro, implantando então a Ditadura do “Estado Novo”, que durou até 1945. Prisões, exílios, tortura, censura, assassinatos marcaram profundamente a ordem política e social do Brasil nestes longos anos, nos quais Vargas se constituiu — com uma legislação de proteção social — como o “pai dos pobres” e a “mãe dos ricos”, na medida em que “equilibrava” os poderes da indústria em expansão, a elite agrária tradicional e os direitos trabalhistas para uma população que no mais das vezes só conhecia miséria, analfabetismo e escravidão.
Em 1954, agora com um Getúlio eleito democraticamente (1950), uma nova tentativa de golpe foi empreendida por setores militares e civis. Entre outros, Carlos Lacerda, da UDN (União Democrática Nacional, partido conservador e opositor de Vargas), empreendeu uma campanha feroz contra o agora Getúlio democrata e defensor das políticas nacionalistas e distributivas. Pressionado pelos militares e por boa parte da imprensa golpista, Vargas se suicida com um tiro no peito no Palácio Presidencial do Catete, “saindo da vida para entrar na História.” De muitas maneiras, o suicídio de Vargas permitiu à instável democracia brasileira mais alguns anos de respiro.
Porém, não foi o que aconteceu com o afilhado político de Vargas dez anos depois, em 1964. Diante do anúncio das “Reformas de Base” e de um governo marcado por forte pressão dos movimentos sociais e populares, João Goulart (o Jango) passou a ser visto como inimigo das elites políticas civis e militares do Brasil. Numa conjuntura marcada por forte pressão dos interesses políticos dos EUA no auge da “Guerra Fria” contra a URSS, Jango foi visto como uma “ameaça comunista” e o próprio embaixador americano Lincoln Gordon se envolveu diretamente num complô que contou com apoio da imprensa, dos empresários e de muitos militares conservadores e católicos, como foi o caso do Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Na madrugada do dia 1 de abril de 1964, as forças militares golpistas e seus tanques nas ruas derrubaram João Goulart, que partiu para o exílio sem oferecer resistência. Começavam os 21 anos de Ditadura Militar (1964–1985), período marcado por atrocidades inimagináveis, como a tortura em pau de arara, estupro sistemático, censura, exílio e desaparecimento dos corpos dos opositores assassinados pelos agentes da Ditadura.
Foi exatamente nesse período que se formou como militar o Capitão Jair Bolsonaro, um fervoroso defensor da caserna, da violência da tortura e de um ódio e ressentimentos profundos contra o Estado Democrático de Direito (e contra os genericamente chamados “comunistas” de toda sorte). Nesse sentido, quando a Ditadura acabou em 1985, ou melhor, quando os militares permitiram a transição de poder aos civis sem, com isso, perder seus variados privilégios, Bolsonaro nunca se conformou. Ele e boa parte da ala conservadora das Forças Armadas fizeram de tudo para tumultuar o processo em variadas instâncias, sonhando um dia recuperar o prestígio e o poder “perdidos” em 1985. Um oficial de baixa patente e muitas vezes persona non grata pelo alto escalão militar, Bolsonaro enveredou pelos caminhos da política, tendo ficado praticamente trinta anos (1991–2019) — quase o mesmo período de toda a redemocratização — no Congresso Nacional esperando uma única oportunidade para ressuscitar a “Ditadura Adormecida”.
E foi exatamente o que ocorreu a partir de 2014. Quando os anos de expansão dos direitos sociais e da distribuição de renda fizeram do Partido dos Trabalhadores (PT) vencedor constante das eleições presidenciais, parte da elite empresarial, da elite midiática, jurídica e setores militares (quase sempre golpistas) articulam um golpe jurídico, parlamentar e midiático que levou à lona não apenas o Governo de Dilma Rousseff, mas praticamente todas as lideranças políticas progressistas da redemocratização. Michel Temer, o vice-presidente de Dilma e articulador do golpe de 2016, abre caminho para a extrema direita brasileira, que não hesitou — depois de muitas artimanhas — em colocar no poder um defensor da Ditadura, o Capitão Bolsonaro.
O restante da história todo mundo lembra. Um governo marcado por milhares de militares em cargos civis, por uma gestão criminosa e genocida da pandemia de covid-19 e uma corrupção absolutamente escancarada, digna de um governo verdadeiramente ditatorial. Mas não nos iludamos, o Capitão Golpista é golpista desde sempre. Por isso não é surpresa alguma pensar que o mesmo, não se conformando com a derrota de 2022, tenha articulado sim uma trama golpista e assassina que quase conseguiu, mais uma vez, implantar uma ditadura no Brasil.
Ora, de muitas maneiras, Bolsonaro representa a História inteira do Brasil. Um grande “capitão do mato”, pau-mandado das elites civis e militares, um autoritário arruaceiro, alucinado e violento que nunca escondeu isso de ninguém. Bolsonaro é o porão da tortura de uma Ditadura cheia de estruturas que permaneceram ao longo da redemocratização. Bolsonaro é a bomba do Riocentro; Bolsonaro é o golpe midiático do Collor; Bolsonaro é o neoliberalismo de FHC; Bolsonaro é a chacina da Candelária e de Vigário Geral; Bolsonaro é a milícia e a “familícia” que aterrorizam o Brasil; Bolsonaro é a farsa de Sérgio Moro e sua justiça parcial; Bolsonaro é a “Faria Lima” e seu rentismo golpista; Bolsonaro é o agro pop que massacra o povo e o meio ambiente; Bolsonaro é o ressentido que não passa a faixa presidencial e foge para os EUA, articulando desde lá os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. E articulando desde antes, com Mauro Cid, Braga Netto, Augusto Heleno e cia, a trama assassina e golpista que sintetiza a história da violência e do autoritarismo no Brasil.
Bolsonaro tem três nomes: golpe, tortura e morte! E ele não está e nem nunca esteve sozinho. Resta a grande questão: quem vai parar a máquina de produzir golpes que ronda a nossa vida, nosso país e nossa História?
Deixe um comentário