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Ponhamos de lado os pormenores — o aspecto mais decisivo do debate de terça-feira foi a presença em palco. De um lado, tivemos novidade e energia, do outro, cansaço e repetição. Vimos na televisão uma nova geração a abrir caminho na política americana. Kamala Harris venceu o debate porque as expetativas eram contra ela, porque quem precisava de vencer era Trump e porque, pela primeira vez, a televisão que organizou o debate fez uma verificação de fatos instantânea — e isso foi fatal: emigrantes a comerem cachorros? Quem se lembrou dessa maluquice? Trump enterrou-se. Um pouco, é verdade, pois ainda falta muito tempo de campanha, mas, ontem, o populismo de extrema direita ficou mais fraco na América.

Kamala Harris falou do futuro, falou para a frente, falou de um novo tempo. A sua impaciência com os temas do passado deram-lhe uma identidade: basta de Donald Trump, basta de baixeza, basta de mentiras, basta de ordinarice na política. O apelo que fez no final foi o de que a América deve deixar tudo isso para trás — é tempo de restaurar a dignidade e a seriedade na política. Fim de ciclo. Se derrotado, o partido republicano terá que ser refundado nas suas convicções democráticas: esta é a última oportunidade para uma certa linha política que não reconhece a derrota nas eleições e promove manifestações para impedir a transição pacífica de poder. E o que é interessante é que tudo isto poderia ter sido dito a propósito, e talvez até com mais propósito, de Bolsonaro e do Brasil.

O debate irradiou em várias direções. Não foi só Trump que perdeu o debate, foi todo o populismo que perdeu. Um pouco por todo o mundo o radicalismo de extrema direita ficou desiludido com a prestação do candidato de quem esperam muito. A resistência da democracia e dos democratas na América parece estar a ser maior do que julgavam. E se houve uma nação onde o debate teve real impacto foi no Brasil — ontem todo o bolsonarismo sentiu que perdeu o debate. Repararam como os temas são semelhantes? As eleições viciadas, a invasão do Capitólio, Israel. Faltou talvez a Venezuela. O que quero dizer é isto: a política no Brasil vai depender muito do que se passar em novembro nos Estados Unidos.

O ambiente nos republicanos foi de fim de festa. A imagem da derrota ficou clara quando o candidato insistiu em falar aos jornalistas depois do debate para lhes dizer como foi inteligente, como foi brilhante, como foi genial — e de como a sua opositora foi fraca e incapaz. Sim, sim, todos percebemos isso. No final, setenta por cento dos inquiridos acharam que Harris tinha ganho o debate. Fim de festa, fim de ciclo. O sentimento que tive é que uma certa moda de extremismo político (causada pelo terror, pela crise financeira e pela globalização perdida pelo ocidente) pode estar a chegar ao fim. Esse é verdadeiramente o pânico dessas hostes. A estrela do populismo parece estar a empalidecer. E esse sentimento não existe só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. E também no Brasil. Especialmente no Brasil. Há muito que estou convencido que as eleições americanas serão uma espécie de primeiro turno das eleições brasileiras. Na terça-feira, o futuro ficou um pouco melhor.

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