Por Bruno Natal*
“Delete todas as leis de direitos autorais”. Com essas palavras, Jack Dorsey, cofundador do Twitter (atual X), abriu mais um capítulo na disputa entre as big techs e os criadores de conteúdo. Na sequência, Elon Musk saiu em apoio a Jack, numa demonstração nada sutil da estratégia adotada pelas empresas de tecnologia para avançar seus modelos de Inteligência Artificial e desafiar o conceito de propriedade intelectual.
Não é por acaso que esse posicionamento surge justo quando empresas como OpenAI e Meta enfrentam processos bilionários por uso não autorizado de conteúdo protegido. Um documento vazado recentemente revelou que a Meta classificou mais de 7 milhões de livros pirateados como “sem valor econômico”, enquanto os usava para treinar seu modelo de IA. Na lógica corporativa, essas obras são meros insumos para algoritmos, não o resultado de anos de trabalho de autores e artistas.
A argumentação das big techs é engenhosa: elas alegam que seus modelos apenas “aprendem” com os conteúdos, assim como um escritor aprende lendo outros livros antes de criar sua própria obra. É o princípio do “fair use” (uso justo) levado ao extremo. Só que existe uma diferença fundamental: enquanto um escritor humano lê dezenas ou centenas de livros ao longo da vida, absorvendo e reinterpretando influências, um modelo de IA devora milhões de obras em poucas horas.
O CEO da OpenAI, Sam Altman, demonstrou descaso em uma conferência que participou. Ao ser questionado sobre uma tirinha gerada pelo ChatGPT que claramente imitava o estilo dos quadrinhos do Snoopy, provocando reação de aplausos da plateia, Altman apenas sorriu para a plateia e disse: “Podem aplaudir o quanto quiserem, aproveitem”, em tom de deboche. Para as big tech, as regras que protegem criadores são vistas como obstáculos antiquados ao “progresso tecnológico”.
A ironia cruel: as fortunas destas mesmas empresas e seus fundadores foram construídas sobre a proteção rigorosa da propriedade intelectual do que criaram. O argumento de Dorsey de que “existem formas melhores de remunerar os criadores”, sem apresentar alternativas concretas, não encontra eco na comunidade de autores. Uma pesquisa da Authors Guild mostrou que 96% dos autores defendem que querem ser consultados e remunerados pelo uso de suas obras no treinamento de IA.
Os gigantes da tecnologia continuam empurrando sua narrativa de que o avanço tecnológico não pode ser contido por “velhas regulamentações”. Contudo, como disse Nicole Shanahan, advogada que debateu com Dorsey no Twitter, o direito autoral é justamente o que diferencia criações humanas das artificiais. E essa diferença representa um valor fundamental.
* Bruno Natal é jornalista, documentarista e apresentador do podcast Resumido (www.resumido.cc)
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