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José Sócrates

Em Portugal, eleito deputado à Assembleia da República em 1987. Depois secretario de estado, ministro adjunto do primeiro-ministro e ministro do Ambiente. Primeiro-ministro de 2005 até 2011. Secretário geral do Partido socialista entre 2004 e 2011. Licenciado em engenharia civil; MBA pelo ISCTE em Lisboa, mestre em Ciência Política por Sciences Po em Paris.

Duas dúvidas, não uma

Na Venezuela, a divulgação das atas dos votos físicos é a prioridade política chave para a validação eleitoral
01/08/2024 | 06h23

Face ao dilema político que a situação da Venezuela suscita (devemos ou não acreditar no resultado eleitoral) o melhor que podemos fazer é expressar honestamente o nosso ponto de vista. Não devemos ignorar o assunto, nem ceder à conveniência de cada um dos lados — dizer o que pensamos é a única saída, esperando que os próximos acontecimentos venham esclarecer todos os aspectos duvidosos da eleição e trazer àquele país a paz política de que tanto necessita.

Honestamente: esperava que fosse a oposição a ganhar, tendo em conta os resultados econômicos e sociais da governação dos últimos anos. Assim sendo, devo confessar que todos os meus instintos se alinham com as dúvidas da oposição. Mas nada mais do que isso — só instinto. E a pergunta que faço a mim próprio é esta: será justo afirmar que houve fraude baseando-me numa intuição? Será justo condenar assim um regime, sem apresentar provas da manipulação dos resultados eleitorais? Não, não é. E todos os que o fazem — condenar sem julgamento e julgar sem provas — fazem-no com base no preconceito. Afinal, também o regime tem o direito à presunção de inocência, ainda por cima tratando-se de um crime tão horrível como esse, o de falsear a vontade popular.

Não me impressiona o argumento da assimetria de meios de campanha entre a oposição e o governo. Isso era já conhecido. O acordo de Barbados foi assinado com o perfeito conhecimento da oposição de que iria disputar eleições nestas condições. O que verdadeiramente me surpreendeu foi a pressa de todo o processo — anúncio durante a noite, tomada de posse na manhã seguinte. Dizem-me que tudo decorreu segundo as regras eleitorais escritas, mas também isso não me convence: face à situação delicada, nada impedia o Conselho Nacional Eleitoral de divulgar os resultados ao mesmo tempo que divulgava as evidências documentais que os sustentam. Ainda por cima elas existem: as atas físicas de apuramento dos votos.

O sistema eleitoral venezuelano é muito moderno e seguro: o eleitor vota digitalmente, mas deposita também numa urna o seu voto impresso. Uma dupla votação, portanto — a digital e a física. Em consequência, existe uma forma de confirmação da votação que consiste em comparar os votos digitais com os votos físicos depositados nas urnas. Esse processo de auditagem é garantia de que o processo não foi viciado. Não sei se faz ou não faz parte do processo legal que rege as eleições, mas certamente não será pedir demais ao governo que as divulgue publicamente para que todos possamos confirmar que o que aconteceu na Venezuela foi uma eleição limpa.

Bem sei: a oposição falou em fraude — e não apresentou provas. Bem sei: a oposição falou em manipulação das eleições pelo Conselho Nacional Eleitoral — e esqueceu que dois dos cinco membros foram escolhidos por ela. Mas ponhamos de lado o que não tem remédio. A divulgação das atas dos votos físicos é a prioridade política chave para a validação eleitoral. Expulsar diplomatas ou ameaçar a oposição não adianta nada e agrava tudo. Muito menos ajuda a invocação da “aliança cívico-militar” (o Brasil sabe muito bem o que isso quer dizer). O que é urgente é pôr as cartas na mesa: mostrar as atas de eleição e acabar com as dúvidas sobre as eleições. E lembrar o óbvio: as dúvidas eleitorais são duas, não uma — a dúvida sobre a limpeza das eleições e a dúvida sobre se para a oposição as eleições só são justas se for ela a ganhar. Duas dúvidas, não uma.

 

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