Por Valter Mattos da Costa*
Quando escrevi o artigo “Sem rodeios: os professores ganham muito mal” aqui no ICL Notícias, destaquei as mazelas que assolam a educação pública no Brasil, sob a perspectiva de um educador. Mas é impossível não voltar ao tema diante do PLC 186/2024 (projeto que altera direitos e condições de trabalho dos servidores municipais do Rio de Janeiro) e das declarações do prefeito Eduardo Paes sobre o assunto em entrevista coletiva concedida na quarta-feira (27) — muito em função de os profissionais da educação do município estarem em greve. Na cidade do Rio, em sua rede pública, a precariedade dos professores não é apenas salarial; é estrutural e política. E, para piorar, temos um gestor que, sob o véu de estar “preocupado” com os alunos, avança contra direitos conquistados há décadas.
A ampliação da hora-aula de 50 para 60 minutos, defendida por Paes, é um grave equívoco. A hora-aula de 50 minutos é uma prática consolidada em diversos países da OCDE, como Alemanha, Espanha e Portugal, e foi estabelecida com base em critérios pedagógicos. Essa duração respeita os limites de atenção dos alunos e permite aos professores um ensino mais dinâmico e eficiente. Estender esse tempo para 60 minutos não apenas compromete o foco dos estudantes, mas também ignora as exigências técnicas da prática docente. Só alguém completamente desconectado da realidade da sala de aula proporia semelhante medida.
Além disso, é crucial compreender a distinção entre “hora-relógio” (60 minutos) e “hora-aula” (o tempo efetivo de aula, definido pelas características pedagógicas de cada instituição). A prática docente vai muito além do tempo em sala (estamos em contato com os alunos por todo o ambiente escolar). Há planejamento, correção de atividades, relatórios e outras tarefas que, muitas vezes, são realizadas fora do ambiente escolar (o trabalho continua em casa quase que ininterruptamente).
Ampliar a hora-aula para hora-relógio equivale a transformar o magistério em uma linha de produção, desconsiderando o trabalho invisível, mas essencial, que sustenta a qualidade do ensino. Em uma tentativa de justificar a mudança, Paes afirmou em sua entrevista:
“(…) E essa história da carga horária é o seguinte, maluco. Basicamente, você contrata um professor para trabalhar 40 horas. Ele faz um concurso público e você [sic] vai trabalhar 40 horas por semana. E aí a partir de 2013, 2014, surgiu a história de um terço do planejamento, ou seja, o professor tem que ter um tempo para preparar a aula, para corrigir prova, estou de acordo, era uma novidade ali. A Prefeitura do Rio pegou a maior rede de ensino da América Latina, pegou toda a sua rede e ali eu implementei um terço de planejamento, então o cara que trabalhava 40 horas passou a trabalhar 26 horas.” (Eduardo Paes, 27/11/24).
Essa fala, debochada e cínica, é um engodo. A carga horária de 40 horas inclui o tempo em sala e o necessário para atividades de apoio pedagógico. Não há “redução de carga”, como ele insinua, mas uma adequação que reconhece as demandas do trabalho docente, previstas na Lei de Diretrizes e Bases. O Supremo Tribunal Federal já legitimou essa organização, que visa garantir tanto o ensino de qualidade quanto a saúde mental e física dos professores.
Retratar o planejamento como se fosse uma regalia ou acusar os professores de trabalharem menos é uma estratégia perigosa. Ela desinforma a população e tenta deslegitimar direitos conquistados com anos de luta. Quem vive o magistério sabe que o estresse em sala de aula é altíssimo, e que as 26 horas presenciais em sala são apenas uma fração do esforço necessário para garantir a aprendizagem dos estudantes. Essa retórica, ao invés de valorizar os educadores, busca transformar direitos em concessões arbitrárias, que qualquer governante poderia retirar ao seu bel-prazer.
O prefeito também se orgulha de ter implementado um terço de planejamento, mas tenta agora desconstruir esse direito com uma retórica que soa populista e paternalista: “A minha preocupação é com as crianças”. Esta manifestação é só uma cortina de fumaça. Sobrecarregar professores e precarizar a educação não resolve os problemas das escolas — só os agrava. Paes quer transformar o professor em bode expiatório, desviando o foco das falhas de sua gestão.
O que está em jogo, na verdade, ou como dizem os meus alunos quando querem ser objetivos, “vou dar um papo-reto”: por razões óbvias, pois a população aumenta, há uma grande demanda por novos professores na rede pública, acompanhada, ao mesmo tempo, por uma gritante carência destes profissionais. No município do Rio, no ano passado, só para se ter uma ideia, turmas do 9º ano se formaram sem terem aulas de Português. Nesse contexto, Paes não quer abrir novos concursos públicos; prefere sanar a carência aumentando a carga dos professores (sem aumento salarial) e apostando em contratos temporários. Não à toa, criou uma lei que permite a extensão do tempo de contrato, o que ameaça diretamente a qualidade do ensino.
Outro ponto alarmante é a tentativa de fragmentar as férias dos professores. Paes está propondo dividir as férias em 10 dias em julho e 20 dias em janeiro, alegando ser uma vantagem (“Até a notícia boa, eles estão transformando em notícia ruim” — disse o prefeito carioca). Segundo ele, este parcelamento é uma alternativa, um “benefício”, ou seja, está brincando com a inteligência de quem trabalha em condições muitas das vezes exaustivas. Decompor as férias é uma manobra que prejudica o descanso necessário, tornando o professor ainda mais vulnerável ao adoecimento físico e mental (como disse no primeiro artigo). Na prática, o recesso de julho, tradicional no magistério, é eliminado e incorporado arbitrariamente ao período de férias, reduzindo o descanso em janeiro, caso o profissional opte pelos dez dias no meio do ano. Isso dificulta o planejamento dos professores, comprometendo seu tempo de recuperação e organização pessoal.
Paes ainda tentou desqualificar a mobilização dos servidores públicos e reduzir seu descontentamento a uma manifestação partidária: “você tem um sindicato um tanto quanto politizado”. É jogo sujo, é “jogar pra galera”, pois ele sabe que a insatisfação com o PLC 186 vai muito além de filiações políticas ou ideológicas. Falando especificamente da educação, profissionais de todas as posições — sejam de esquerda ou de direita — estão se pronunciando publicamente contra as medidas prejudiciais do projeto, cada um à sua maneira. A categoria está unida pelo reconhecimento de que a educação pública e os direitos dos trabalhadores estão sendo atacados. Diminuir esse movimento a um “jogo político” é uma tentativa clara de desviar o foco das questões centrais, dividir a categoria e desinformar a população.
Embora o debate tenha origem no Rio de Janeiro, as propostas de Paes evidenciam um padrão de desvalorização dos professores que ecoa em todo o Brasil. A falta de concursos públicos, o aumento da carga de trabalho e a precarização das condições de ensino são sintomas de um problema estrutural que precisa ser enfrentado com seriedade. Esses ataques aos direitos dos professores não são apenas questões locais, mas representam uma ameaça ao futuro da educação pública em todo o país.
Eduardo Paes, ao propor essas mudanças, demonstra não estar preocupado nem com a educação, nem com os professores e muito menos com os estudantes. As medidas do PLC 186/2024 são um ataque direto aos pilares da educação pública, enfraquecendo tanto os profissionais quanto o sistema educacional. É preciso resistir a essas mudanças, que sacrificam a qualidade do ensino e o respeito àqueles que dedicam suas vidas a educar.
Sem rodeios mais uma vez: os professores ganham mal, e com Eduardo Paes ganham ainda menos respeito.
*Professor de História, especialista em História Moderna e Contemporânea e mestre em História social, todos pela UFF, e doutor em História Econômica pela USP
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