Por Cesar Calejon
Assim como fizeram com Jair Bolsonaro, em 2018, muitos pensadores brasileiros vêm refletindo sobre a ascensão da figura de Pablo Marçal nas últimas semanas. Em linhas gerais, alguns dos nossos intelectuais mais capazes classificam os eleitores do coach como “otários” ou “idiotas”, o que, a meu ver, caracteriza um erro crasso.
No século 16, Étienne de La Boétie, em “Discurso da servidão voluntária“, pondera algumas formas pelas quais as massas podem, voluntariamente, se submeter ao governo de um único homem, que ele classifica, “muitas vezes, como o mais covarde” (covarde o bastante para dar golpes em velhinhos protegido atrás da tela de um computador): pelo hábito, pela religião e pela superstição (organizada ao redor da figura do líder):
“(…) mas, oh, bom Deus! O que pode ser isso? Como o denominaremos? Que desgraça é essa? Ou que vício? Ou, antes, que vício infeliz? Ver um número infinito de homens (…) sofrer as pilhagens, a libertinagem, as crueldades, não de um exército, não de um campo de bárbaros contra o qual tinham de derramar o sangue e a vida futura, mas de um só; não de um Hércules, nem de um Sansão, mas de um homúnculo e, muitas vezes, o mais covarde”.
Cinco séculos depois, com a concentração dos poderes midiático, político e econômico vigente hoje no Brasil, o cenário sociopolítico é substancialmente mais complexo do que o que foi organizado pelo pensamento do filósofo francês. Ainda assim, a estrutura fundamental do raciocínio preconizado por La Boétie oferece um elemento-chave para compreender a realidade brasileira no começo do século 17: a servidão — e consequente dominação — do nosso povo não nos é imposta, única e exclusivamente, por meio do uso das armas de fogo e da força bruta. O modelo organizacional que conforma a estrutura de controle dos brasileiros se vale de armas mais sofisticadas e de uma espécie de força sedutora, que utiliza os “sonhos e os desejos” dos próprios indivíduos para fazer ascender, deliberada ou colateralmente, lideranças como Jair Bolsonaro ou Pablo Marçal, por exemplo.
Figuras que, em última instância, não possuem nenhum projeto de emancipação popular e, a despeito de se valerem de uma sensação de antissistema, invariavelmente são frutos do sistema que afirmam combater e terminam por reforçar ou piorar o que está instituído. Contudo, tais lideranças possuem as suas respectivas forças políticas amparadas em uma dimensão singular, que não é a mera idiotice: a capacidade de oferecer soluções simplistas para problemas complexos por meio de uma linguagem absurdamente objetiva e que toca diretamente nos anseios populares mais profundos.
Soluções simples para a pobreza, para a ascensão social, para a corrupção, para a segurança pública, para obter o corpo “perfeito” etc. Grosso modo, soluções simples para conduzir a maioria das pessoas da condição de oprimidos para opressores, o que acontece quando a educação não é libertadora, conforme nos alertou Paulo Freire. Ou seja, boa parte da nossa nação aceita ser tiranizada porque deseja tiranizar.
Atualmente, o fazendão com cassino no qual o Brasil vem se transformando permite a ascensão de tais figuras incapazes e criminosas aos cargos majoritários da República ou até à própria Presidência. E isso não acontece porque temos uma nação de “otários” ou “idiotas”, mas porque essas lideranças, talvez empiricamente, entendam como manipular essa expectativa dos “sonhos e dos desejos” mais populares, o que as leva a, consequentemente, mobilizar um grande capital político.
Reduzir a ascensão de Bolsonaros e Marçais à estupidez do nosso povo significa incorrer no mesmo tipo de expediente que os caracteriza: significa tentar explicar uma questão complexa por meio de uma explicação demasiadamente simplista e insuficiente. Um erro crasso.
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