Fábio Bispo — Mongabay
No terceiro dia navegando pela bacia do Rio Purus, no sul do Amazonas, a reportagem da InfoAmazonia aporta na remota aldeia Penedo, às margens do Igarapé Seruini. Há séculos, os relatos de perseguissões, massacres, torturas, experiências de escravidão e batalhas pela terra marcam a história do povo Apurinã, que se refugiou nos cantos mais intocados da floresta, longe dos seus algozes. Agora, a ameaça é invisível: as terras dos Apurinã do Seruini estão sendo vendidas na internet como NFTs (do inglês Non-Fungible Tokens, ou tokens não fungíveis em português), pela empresa Nemus.
A empresa diz que adquiriu 41 mil hectares de uma área que faz parte da Terra Indígena Baixo Seruini/Baixo Tumiã, que está em processo de demarcação. A área foi dividida em lotes de diferentes tamanhos, que são vendidos desde março de 2022 na internet com a promessa de preservar a Amazônia . Cada NFT representa uma parcela do território, onde a Nemus ainda espera explorar 200 mil castanheiras e gerar créditos de carbono.
Nós já íamos descendo da lancha, quando o cacique Kaiaxi fez questão de se fazer percebido na outra margem do igarapé, empunhando o arco e flecha e demonstrando que está sempre pronto para reagir, mas, naquele momento, ele estava mesmo atrás de comida: “Eu tô há dois dias tentando pegar esse tucunaré , rapaz”.
O cacique disse que não sabia que lotes da aldeia onde vive haviam sido vendidos na internet, mas recorda que a Nemus esteve na região se dizendo dona das terras. A empresa prometeu desenvolver projetos com os indígenas, gerando empregos e promovendo melhorias para as aldeias, mas sempre ignorando o reconhecimento do território tradicional.
Em dezembro do ano passado, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou a suspensão do projeto da Nemus, orientação também encaminhada para a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Mas nenhum dos órgãos sabia que a empresa vendeu áreas do território como NFTs, e muito menos que ainda continuam sendo negociadas, como identificou a InfoAmazonia.
Em setembro, nossa reportagem esteve nas aldeias Penedo, Kamarapa, Maloca e Bom Jesus, nas Terras Indígenas Baixo Seruini/Baixo Tumiã e Marienê, que são diretamente impactadas pelo projeto anunciado pela Nemus.
A reportagem identificou 1.482 pedaços da terra indígena dos Apurinã registrados como NFTs, que são certificados digitais de propriedade de ativos únicos (não fungíveis), como obras de arte, objetos colecionáveis ou propriedades. Nesse caso, cada comprador adquire virtualmente uma parte do território, que pode vender para outros a qualquer momento. As negociações funcionam como uma bolsa de valores e o preço do NFT varia de acordo com a cotação de um dinheiro virtual criptografado, as criptomoedas , e do próprio valor do ativo ambiental que supostamente estaria contribuindo para a preservação da floresta. Pelo menos 665 clientes compraram lotes da floresta e continuam negociando essas áreas em NFTs em plataformas especializadas.
O detentor do NFT, segundo a Nemus, pode navegar pela área que adquiriu e detectar fauna e flora ou ameaças, monitorando e auditando a conservação da área.
Empresários da madeira
A Nemus diz que comprou a terra da Manasa Madeireira Nacional S.A (Manasa) e que seu projeto não está em Terras Indígenas. Afirma, ainda, que a missão dos seus NFTs “é a conservação florestal”.
A Manasa já figurou na lista dos maiores desmatadores da Amazônia e chegou a responder por crime ambiental em 35 ações civis públicas.
As áreas disponibilizadas em NFTs pela Nemus variam de um quarto de hectare a 81 hectares. O projeto prevê ainda a exploração de 200 mil castanheiras na área onde a empresa se diz proprietária, com a implantação de uma planta de beneficiamento para exportação, com mão de obra indígena. Há também previsão para a construção de estradas, pistas de pouso e mecanização da coleta da castanha.
Além disso, segundo a empresa, os investidores do projeto podem utilizar as áreas para geração de créditos de carbono. Em nenhum momento a Nemus se apresenta como uma empresa de crédito de carbono, mas garante essa possibilidade aos chamados “patrocinadores”, clientes que ficam com as maiores cotas dos NFTs.
Dentro do orçamento do projeto, a Nemus chegou a comprar um barco para a Polícia Militar do Amazonas, no município de Pauini, como forma de melhorar a segurança na região e evitar invasões das áreas dos NFTs. Os indígenas receberam da empresa roçadeiras para abrir caminhos até os castanhais.
Os negócios da Nemus estão associados a investidores europeus e à ASF BRAZIL LTD, uma holding fundada pelo italiano Maurizio Totta e com sede em Londres. No Brasil, Totta é sócio dos empresários Pedro Ruhs da Silva e Flávio Meira Penna, que aparecem como donos da Nemus e de outras empresas em sociedade com a ASF. Os principais investimentos do grupo na Amazônia estão voltados para a extração de madeira com a recuperação de empresas falidas ou endividadas.
Em uma entrevista ao programa americano Break It Down Show, o fundador da Nemus, Meira Penna, disse que “os indígenas são meio que invasores” das áreas adquiridas pela Nemus, mas afirmou que “eles viverão lá para sempre” e que “passarão rapidamente para o mundo digital”.
No vídeo, que está na íntegra no YouTube, o empresário detalha seu projeto de NFTs na área que é reivindicada pelos indígenas. A intenção do negócio era arrecadar até 5 milhões de dólares, com NFTs vendidos de 150 a 51.000 dólares. Com esse dinheiro, a Nemus compraria mais áreas na região para lançar mais NFTs, segundo explica no vídeo.
Além da Manasa, os empresários também compraram uma madeireira no Acre, a Laminados Triunfo, e exportam para os Estados Unidos.. Em abril deste ano, a Laminados foi alvo de uma investigação que apura “esquentamento ilegal de madeira”, deflagrada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Indígenas não foram consultados
A terra tradicionalmente ocupada pelos Apurinã, e reivindicada por eles há décadas, só foi reconhecida pela Funai em 2017, quando foram iniciados os estudos de identificação, mas o processo de demarcação nunca foi concluído. “O que queremos é a demarcação do nosso território para nos sentirmos mais seguros”, afirma Kaiaxi.
As aldeias do Seruini não têm luz elétrica ou acesso à internet. Segundo os indígenas, a falta de estrutura básica foi a senha para Flávio Penna e sua equipe prometerem melhorias para as comunidades, como condições mais dignas de atendimento à saúde e de estudo para os mais novos. As primeiras investidas ocorreram em 2021, durante a pandemia, e com autorização da Funai da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), infringindo a norma do próprio órgão que impedia a entrada de não indígenas nas comunidades devido à Covid-19.
“Disseram que vinham ajudar a gente, bateram fotos nas castanheiras para verificar a produção, mas depois quando voltaram já vieram com outra história”, disse o cacique Kaiaxi.
E, na verdade, os indígenas nunca foram consultados corretamente sobre os planos da empresa e muito menos sabiam que as terras que habitam estavam sendo vendidas como NFTs que prometem a preservação da Amazônia.
Segundo o MPF, a falta de consulta prévia, livre e informada, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), “evidencia supostas violações de direitos às comunidades”, o que motivou a instauração de um inquérito para apurar o caso, instaurado em julho de 2022.
O texto da Convenção 169 prevê o direito à consulta de qualquer projeto que interfira em Terras Indígenas, e que toda a comunidade indígena reconhecida, independentemente se o território já foi homologado ou não, saiba sobre o que está sendo proposto e ela é quem decide sobre a aprovação do projeto ou não. O assunto deve ser discutido internamente pelos indígenas, com adoção de protocolo de consulta, que permita a todos do território terem acesso às informações sobre os projetos.
Ao MPF, a Nemus alegou que a propriedade não está em “uma Terra Indígena devidamente demarcada” e por isso o entendimento da empresa “é o de que não existe a aplicabilidade de consulta prevista na convenção OIT 169 em nenhum de seus artigos”.
No mesmo documento, de agosto de 2022, a Nemus diz que ainda não estava desenvolvendo atividades econômicas na região. No entanto, nesta data, a empresa já tinha lançado seus NFTs no mercado, que começaram a ser vendidos em março de 2022.
Empresa mudou nome da terra indígena para NFT
Segundo informações de indígenas que vivem na área, a Nemus conseguiu convencer o cacique de uma das aldeias a acompanhar representantes da empresa até o cartório da cidade, em Pauini, e mudar o nome da área que a empresa se diz dona para “NFT”. Demais indígenas com quem a InfoAmazonia conversou dizem que só tomaram conhecimento da alteração do nome do terreno depois que ela ocorreu, sem que houvesse o conhecimento dos demais caciques e da comunidade. Em vídeo institucional feito pela própria Nemus, é possível ver que o indígena assina um documento com o polegar, que indica que ele não saberia escrever. O indígena que aparece no vídeo não quis receber a nossa reportagem.
Com a mudança, toda a área que a Nemus afirma ser dela, incluindo as aldeias Kamarapa e Penedo, passou a ser denominada Non Fungible Territory (NFT).
O cacique Teixeira de Sousa Lopes Apurinã, da aldeia Kamarapa, que fica próxima a Penedo, reclamou da falta de transparência por parte da Nemus e disse que a empresa chegou na região oferecendo ajuda, mas nunca falou como funcionaria o projeto de NFT.
“Eles vieram aqui, gravaram vídeo com a gente e entregaram uma placa, mas nunca explicaram direito o projeto, só disseram que iriam nos ajudar”, contou apontando que, diante da necessidade que enfrentam, os indígenas aceitaram ajuda da empresa.
“Eu fiz uma lista de coisas que precisávamos: terçado [facão], afiador, falei que precisamos de melhoria na escola, internet… mas não para que fossemos mandados por eles”, contou Teixeira.
“A gente gostaria que os próprios governos reconhecessem essa nossa situação, meu avô era cacique, meus irmãos são caciques, eu sou cacique dessa aldeia, mas nos sentimos abandonados. Não estamos pedindo, estamos reivindicando uma coisa que é nossa de direito. Nós somos donos daqui, nós viemos dessa terra” , emendou o líder.
Como forma de se proteger e reforçar o uso tradicional da terra, os Apurinã montaram um mapa etnoambiental, onde localizaram pontos importantes de uso das comunidades, como os castanhais, área de coleta de barro para cerâmica, áreas de caça e as cachoeiras, por exemplo. Cada aldeia mapeou sua área de uso, que formam a área requerida para demarcação definitiva do território.
R$ 176 mil em um NFT do projeto Gênesis
Cada NFT do projeto Gênesis é representado por uma carta virtual, que traz a imagem do que existe na área adquirida, como a onça, o bicho preguiça, o urubu-rei, tucanos, espécies de árvores e frutos. O card informa o tamanho da área e a coordenada geográfica.
Entre os 1.482 NFTs do projeto identificados dentro da terra dos Apurinã, foram encontrados tokens do Gênesis negociados em plataformas especializadas, como Coin Base NFT, LooksRare e OpenSean. Os preços são cotados em criptomoedas, entre 17 e 603 dólares.
A transação mais alta em um único NFT encontrada pela reportagem foi de 19,44 WETH, equivalente a R$ 176 mil, em valores atuais da criptomoeda, cotada em 1º de novembro, por uma área equivalente a 89 hectares. A primeira venda desse token em específico ocorreu em fevereiro de 2022, em uma pré-venda. A coleção Gênesis, segundo informações da empresa, foi lançada oficialmente em março de 2022.
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