Só pra contrariar, ouso aqui dizer que a chamada Esquerda não está nem nunca esteve morta. E explico. A História não deve ser medida apenas por análises de curta duração. E, no caso do Brasil, muito menos só com os critérios das democracias liberais (EUA, França, Inglaterra) em crise desde sempre também. Ora, coloquem em perspectiva a história política brasileira. A primeira vitória efetiva do campo da Esquerda democrática só se deu em 2002. Mais de cem anos depois da Proclamação da República liberal excludente (1889). Ainda assim, efetivada em função de cumprir alguns requisitos básicos das lógicas de mercado.
Digo isso porque sem essa “concessão” não haveria lugar para ela no fazendão dominado pela mídia corporativa familiar e pelos proprietários de grosso trato, ainda mais após a queda do muro de Berlim (1989). Qual lugar do mundo não sucumbiu às pressões do “Fim da História” (a suposta vitória do Capitalismo) e da razão neoliberal que tem mudado quase que em definitivo nossas subjetividades? Em todo caso, o que deveríamos fazer no lugar dos pactos de conciliação? A luta armada? Retomar a guerrilha de Marighella? Certamente, o caminho da violência revolucionária ainda divide o nosso campo e nos assombra a tudo e a todos: há mudança estrutural sem a “Virtude do Terror”? O espectro de Robespierre ronda o mundo.
O ponto aqui é que as forças políticas em disputa hoje são desdobramentos das ideias e lutas do século 19, do Liberalismo, do Socialismo e de suas ressignificações posteriores. No século 20, muito pouco tempo depois do início das hipóteses e práticas comunistas, Lenin e os Bolcheviques russos abalaram o mundo em 1917, inaugurando uma era de contestação ao liberalismo capitalista no momento mesmo que ele ainda se consolidava. Liberalismo que, sempre a duras penas, caiu de cara no chão, no concreto da Ilha de Manhattan, com a Crise de 1929. Fôlego para a URSS, que, com o famigerado Stalin, vence o Fascismo (“etapa superior do Capitalismo”, para brincar com o diagnóstico de Lenin) e disputam, na Guerra Fria, as mentes e os corações de toda a humanidade. Por óbvio que o que há (ou o que restou) de minimamente decente nas democracias liberais são resultado das pressões do fantasma do comunismo soviético, que força a elite ocidental a ceder diante das reivindicações pelos direitos mais básicos.
Faz muito pouco tempo que esse mundo sucumbiu e muito pouco tempo que o tal triunfo americano se aprofundou. Ainda assim, a “nova ordem mundial” da hegemonia neoliberal é contestada em toda parte — com avanços e recuos — tendo a China como seu novo grande adversário no xadrez geopolítico. Estaria a hegemonia da vida material e do capitalismo mundial mudando de mãos? Seria a China o mais do mesmo? Analistas analisam e sentenciam. Enquanto isso, medir as vitórias e derrotas da Esquerda é constatar que suas ferramentas de luta pela hegemonia sempre estiveram muito aquém daquelas que efetivamente dominam a vida econômica do mundo. Parte significativa de nossa luta sempre foi no estilo “intifada”, na guerrilha clandestina, na rés do chão, longe dos circuitos institucionais tradicionais. Nesse sentido, algumas vitórias no campo institucional — mesmo que contraditórias — se tornam ainda mais significativas. Contudo, talvez a pergunta que deva ser feita seja outra. A Esquerda não pode e nem deve reproduzir os padrões de transformação da natureza e dos recursos do mundo do mesmo modo que a Direita sempre o fez. Acho que aí está um dos nós da questão, a vida material mais básica, como produzi-la sem hierarquias e ressentimentos?
Voltando ao caso brasileiro, de uma elite política oriunda das fileiras da escravidão, as lutas populares operaram um verdadeiro milagre, resistiram e conquistaram direitos ao arrepio de um das estruturas mais autoritárias de toda a História Moderna (Capitalismo e Escravidão). Claro que isso não significa dizer que “estamos bem” diante do cenário catastrófico diante de nós. Mas quando ele não foi catastrófico? Walter Benjamin que o diga. Se considerarmos nossas “guerrilhas” a partir do marco de 1789 (ou 1848), quantas vitórias e derrotas somamos? De quantas derrotas somos feitos? De quantos e quantos massacres e injustiças nós sobrevivemos e “renascemos”?
As ideias e as práticas da Esquerda são recentes no mundo, uma mirada de longa duração vai demonstrar um caminho muito mais complexo e caracterizado por lutas constantes e uma capacidade de reinvenção admirável. Por isso, o que a campanha de Boulos fez, diante dos recursos infindáveis da máquina de Direita (material e simbólica) operada por Nunes-Marçal, foi uma verdadeira vitória. Não caiam na cantilena da mídia golpista. Uma derrota nas urnas hoje não pode e nem deve decretar morte alguma. Apenas começamos.
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