Li com curiosidade sobre o teste genético feito pelo craque Vinicius Júnior e que localizou suas raízes no povo Ticar, da República dos Camarões, país da África Central. Talvez não haja como saber quando e muito menos o ponto exato onde o antepassado ticar do Vini pisou em solo brasileiro, mas sabemos o “como” e o “porquê”.
Ler qualquer notícia que se relaciona a África no Brasil enche de impaciência porque a maioria dos textos sempre revela a distância que nos separa deste continente. Uma distância bem maior do que o Atlântico. O problema é que sabemos o modo e o motivo pelo qual o antepassado do nosso admirado jogador veio deixar descendência por aqui, ou seja, um sequestro para a escravidão. E isto congelou a história dele e a nossa neste ponto. A violência literal e simbólica foi tamanha, que causou uma negação em todos os sentidos.
Fiquei pensativa porque, assim como Vini, também fui buscar origens. Digam o que quiserem, mas especialmente as pessoas negras no país têm essa lacuna, essa curiosidade e essa necessidade de refazer este caminho, mas quando o fazemos o que encontramos? A imagem de uma África estereotipada, estigmatizada e um tanto congelada lá, no tempo daquele “como” e “porquê”, e este fato leva a um outro extremo, a uma certa idealização daquele continente mítico.
Alguns debates giraram sobre isto, na última Festa Literária das Periferias, a FLUP. O pesquisador e compositor Tiganá Santana alertou acertadamente para a necessidade de sabermos sobre a contemporaneidade africana. Assim como não ficamos parados na Idade Média e no Renascimento da História europeia, também não deveríamos ficar apenas num passado do continente negro fincado na invasão europeia. O que está acontecendo lá agora? Quem são os artistas, os intelectuais, os expoentes…? Quem são, afinal, aquelas pessoas?
No mesmo evento, a pesquisadora e escritora Oyeronke Oyeumi, autora do essencial “A invenção das mulheres” também disse algo que me tocou: “Veja… qual o problema de romantizarem um pouco a África? Ela tem sido por tantos séculos tão cruelmente demonizada…”. Ambas as afirmações são verdadeiras.
O que eu gostaria de ver nas matérias sobre Vini e a República dos Camarões é que somos o maior país negro fora da África e que por isso já somos considerados por muitos uma extensão política dela mesma. Somos formados por uma miríade de povos que vieram misturados e deram a origem a muita coisa a ponto de, como disse o saudoso fotógrafo Januário Garcia, existir uma história da África sem o Brasil, mas não uma do Brasil sem a África.
Queria ver escrito que Camarões foi colonizado tiranicamente pela França até o dia 1º de janeiro de 1960, dia que marca a sua independência, e que falam muitos idiomas (não dialetos!), que são formados por muitos povos (não tribos!), que possuem muito problemas, obviamente, mas são uma riqueza humana como somos todos e todas nós.
O meu exame de DNA deu 86% um mapa africano em cada célula. Uma mistura incrível de Nigéria, Benin, Senegal, Camarões… quem sabe, em algum passado distante, nossos deca avós se viram? Quem sabe tantas coisas das quais não temos conhecimento. E este desconhecimento, no Brasil é tudo o que nos impede acessar outro estágio de estima, consciência, identidade e, sobretudo, liberdade.
Como disse o poeta José Carlos Limeira, no poema Quissange, no livro “Encantadas”:
Um leve som de quissange
Varando a varanda fluindo
Rara beleza, perfeito som
Visão noturna, madrugada furtiva
Dança de desejos
Guardados ardis
Poucos toques, beijos
Sem outonos, primaveris
Nós dois sem dilema
Você moça de Angola, Benin
Eu com calma de griot
Vou fazer meu melhor poema
E guardar todos os incensos, marfim
Lábios e sonhos
Prova cabal de que a África é aqui.
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