Há pelo menos seis anos, o Brasil respira o ar carregado do enxofre que a extrema direita espalhou no país. O movimento que levou Jair Bolsonaro à Presidência jogou no lixo todos os vestígios de civilidade e ética que já eram escassos na política nacional.
Essa grosseria contaminou praticamente todos os setores da sociedade. Aquela lenda do “brasileiro cordial” foi para o espaço.
Tudo dessa gente é baseado em ódio. Seja ódio aos direitos humanos, às mulheres, aos negros, aos pobres, à ciência… Para eles, praticamente tudo é odiável se não seguir sua cartilha ideológica.
Nessa trip rancorosa, os neofascistas brasileiros dedicam repulsa especial a uma categoria: os artistas.
Como consequência, desde que Bolsonaro se tornou presidente, os recursos para a cultura encolheram drasticamente. Nos encontros presenciais de bolsonaristas e nas suas redes sociais, os artistas passaram a ser tratados como parasitas, vagabundos que se beneficiam do dinheiro público.
O Ministério da Cultura, que já foi chefiada por Gilberto Gil (!), foi rebaixado a Secretaria e os seres mais desprezíveis designados para comandá-la: um sujeito que mimetizava nazistas e um ator de terceira categoria do antigo elenco de “Malhação”.
Entende-se essa raiva.
A arte constrói um espaço que é oposto do que eles pretendem instaurar.
Por incrível que pareça, faz todo sentido que eles odeiem os artistas.
A cultura é capaz de nos tirar desta realidade pesada e transportar para um espaço abstrato, poético, sensível. No sentido oposto, também pode nos resgatar da alienação, do falso paraíso, e esfregar na nossa cara as mazelas do presente que não queremos enxergar, ou os traumas do passado que nos querem fazer esquecer.
É justamente essa a tarefa que cumpre o filme ‘Ainda estou aqui’.
Talvez porque a realidade atual esteja tão barra pesada, lembramos muito pouco dos opressores do passado recente, buscamos temas mais agradáveis, imaginando que a sociedade brasileira estava em consenso mínimo.
Foi assim que a brutalidade da ditadura militar deixou de ser citada com a frequência devida, a tal ponto que jovens se surpreenderam com a repressão retratada no filme, mesmo de forma tão sutil.
A maneira delicada com que aborda os anos de chumbo fez o público se colocar no lugar daquela família que repentinamente perde o pai, o homem que desaparece para nunca mais voltar.
Talvez essa abordagem, bem distante do banho de sangue que o cinema e os canais de filmes proporcionam diariamente, tenha sido decisiva para o envolver o público.
Conduzido pela interpretação magistral de Fernanda Torres, o espectador se emociona com a mulher que contém o desespero de ver Rubens Paiva sumir, sem saber se voltará a vê-lo e sem querer desesperar os filhos.
Foi assim que Fernanda ganhou o Globo de Ouro e conquistou a indicação para concorrer ao Oscar de melhor atriz. Da mesma forma, ela deu empurrão decisivo para as indicações da obra para disputar a estatueta de “melhor filme” e “melhor filme estrangeiro”.
O filme, como este colunista já assinalou, não precisa do aval gringo como atestado de qualidade. Mas é fenomenal a visibilidade planetária que o Oscar confere à película, ao diretor, aos atores, à ditadura militar, a Rubens Paiva e… a Eunice Paiva.
Em uma entrevista após a indicação ao Oscar, Fernanda Torres destacou a principal característica que ajudou Eunice a enfrentar a ditadura militar sem se contaminar pela brutalidade dos algozes de Rubens Paiva: a civilidade.
E foi assim, dessa forma toda própria, que ela protegeu os filhos, protegeu os amigos, protegeu os indígenas e vários outras pessoas.
A dignidade de Eunice, descrita de forma emocionada no livro do filho Marcelo, atravessou o tempo e, por causa do filme, atraiu a admiração do mundo.
Aos opressores de ontem e aos que têm saudades deles, resta recolherem-se à sua incivilidade e emitir rosnados escatológicos nas redes sociais, para dar vazão aos ressentimentos.
No topo do mundo, onde estão aqueles que resgataram a história de Eunice Paiva, não é possível ouvi-los.
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