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Por Marcelo Santos*

Em 26 de fevereiro, Jeff Bezos anunciou que o foco do conteúdo opinativo no Washington Post, comprado pelo magnata em 2013 por U$ 250 milhões, será defender de modo exclusivo as liberdades individuais e o “livre mercado”. Dito de outro modo: o Post passará a ser uma máquina ideológica neoliberal e, assim, neofascista. Explico-me.

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Quando nos perguntamos por que o fascismo se repete, por que ele persiste mesmo depois de ser aparentemente derrotado em 1945, a resposta não está na psicologia individual ou em traumas mal resolvidos da infância dos ditadores e dos empresários cretinos que os sustentam.

Escavar os problemas familiares de Trump, a disfunção erétil de Bolsonaro ou a fama agressiva de Bezos, conhecido por perguntar a funcionários coisas como “você é preguiçoso ou incompetente?”, apenas nos desloca do que precisamos de fato observar: o fascismo, como ensinou o filósofo Theodor Adorno, só pode ser explicado quando o entendemos como um projeto social sustentado por bases econômicas e políticas.

O fascismo não tem causas psicológicas. Os mecanismos de manipulação empregados por Goebbels durante o nazismo ou Mark Zuckerberg no alvorecer do trumpismo, lidos ingenuamente como a “natureza irracional” das massas e multidões manipuladas, não aconteceu e não acontece porque sociedades inteiras enlouqueceram coletivamente do dia para a noite e aderiram a ditadores. O fascismo foi e continua sendo uma resposta funcional do sistema político-econômico para momentos de crise do capital.

Em verdade, o fascismo emerge como defesa do próprio sistema econômico ao risco de sua destruição. Se há desemprego e instabilidade social, se o mercado não se autorregula como prometido, se o caos ameaça devorar as promessas do progresso burguês, como a possibilidade de comprar continuamente roupas da moda e parafernálias tecnológicas, a resposta é simples: encontrar culpados, de preferência aqueles que sempre foram vistos como incômodos.

Nessa organização simplista — mas eficiente — do mundo, o empobrecimento dos norte-americanos e europeus é culpa dos imigrantes. Essa é a releitura de uma mensagem conhecida: “conspiradores farão você impotente, ou mesmo irrelevante, e permitirão a outras pessoas tomarem seu lugar no mundo.”

Assim, ao invés de se revoltarem contra os bancos e grandes corporações que as exploram, as classes médias precarizadas do Norte Global concentram a sua fúria contra minorias e movimentos sociais. O ressentimento de classe, em vez de ser dirigido contra os donos da riqueza, se transforma em ódio contra aqueles que de alguma forma questionam as regras do jogo.

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Na obra “A teoria freudiana e o modelo fascista de propaganda” [1], Adorno desmonta a fantasia de que as massas são levadas ao fascismo apenas por manipulação psíquica. Sim, há apelos emocionais e uma máquina de propaganda bem estruturada, mas tudo isso seria inofensivo se não existisse um caldo social e econômico pronto para receber essas mensagens. Afinal, os estudos culturais já demonstraram que os públicos não são esponjas neutras, mas sim seres pensantes movidos por crenças e valores que, de antemão, provocam aderência ou rejeição aos discursos.

O filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969)

Quando olhamos para a emergência do radicalismo de direita no presente, precisamos rejeitar a noção de eleitores burros que “não sabem votar”, como por vezes lemos em textos opinativos vexatórios.

Não, não se trata de uma população hipnotizada por líderes caricatos e uma volta irracional a valores arcaicos, mas de um processo de reprodução da miséria que torna o autoritarismo a solução mais conveniente para quem não quer questionar as bases do próprio sistema.

É aí que se abre espaço para o levante do personagem paternalista e autoritário que incorpora “a condição de ser o porta-voz da suposta redenção das classes rebaixadas, as quais não se incomodam com as nuances patológicas e debilidades morais e intelectuais do líder fascista, porque, a rigor, elas são iguais. No afã de instaurar o Estado total como solução, estão dispostos a eliminar o que acreditam ser divergências, sejam elas ideias, sejam teorias ou expressões políticas.” (Bordin e Dias) [2]

Precisamos ser a divergência.

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Em um discurso realizado em 1932 para industriais de Düsseldorf, Hitler defendeu aumentar a produção de mercadorias ao máximo através de decisões políticas autoritárias. Os paralelos com as primeiras semanas de governo Trump são inevitáveis, já que o presidente norte-americano promete, por exemplo, reduzir drasticamente na base da canetada os impostos corporativos de empresas com produção nacional de 21% para 15%.

E aqui voltamos ao início deste texto. Se as causas do fascismo são econômicas e políticas, a sua disseminação ideológica se dá pela instrumentalização dos meios de comunicação comprometidos com a agenda neoliberal, responsáveis por naturalizar a exploração das pessoas e dos recursos naturais através de coisas como “conteúdo opinativo” que, deliberadamente, apaga vozes contestadoras. No Washington Post isso foi declarado. É de se apontar, contudo, a opacidade que ainda impera nas redes sociais dos grandes grupos de tecnologia, geridas por tecnologias de caixa-preta cujo funcionamento desconhecemos e por termos de uso e serviço incompreensíveis até para pessoas da área jurídica.

O antídoto para esse sistema altamente impositivo é financiar e consumir o jornalismo progressista independente. É, também e sobretudo, apontar incansavelmente a relação parental neoliberalismo/neofascismo, denunciando o levante à extrema-direita como uma tentativa desesperada de manter a divisão de classes congelada. Não esqueçamos: o fascismo é um projeto capitalista.

 

Referências

[1] Adorno, Theodor. A Teoria freudiana e o modelo fascista de propaganda

Adorno, Theodor. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

Adorno, Theodor. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: Editora Unesp, 2020.

[2] Bordin, R. A. & Dias, J. F. de A. (2024). O radicalismo de direita e a personalidade autoritária em Theodor Adorno. Trans/form/ação, 47(3), Revista de Filosofia da Unesp

 

*Marcelo dos Santos é doutor em Comunicação e Semiótica e diretor de produtos no ICL

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