Como sempre é preciso avisar antes de evoluir no texto: Este artigo quer apenas pensar na arte e, dentro dela, a vida. Esta é uma breve reflexão sobre o tempo, as criações e suas intencionalidades.
Foram anunciadas as filmagens de Geni e o Zepelin, audiovisual baseado na icônica música de Chico Buarque para a não menos emblemática peça do mesmo autor: “Ópera do Malandro”. No entanto, uma surpresa. A atriz escolhida para o filme dirigido por Anna Muylaerte, conhecida pelo ótimo “A que horas ela volta?” entre muitos outros trabalhos exitosos, foi Thainá Duarte, uma mulher cisgênero. Surpresa porque a sinopse na Ancine indicava uma personagem trans e a canção homônima ao título foi composta para a personagem do espetáculo do próprio Chico, representada como travesti.
O público que ouviu a música antes de assistir à peça em sua estreia, em 1978, provavelmente sentou-se na cadeira do teatro pensando em uma prostituta clássica, mas deu de cara com Emiliano Queiroz, fazendo uma travesti. Tudo se passa na Lapa carioca e em certo ponto da história estão atrás de Max, um contraventor. É quando aparece Genival, também conhecida por Geni, que trabalha para Max.
Estamos falando da fase mais cruel da ditadura militar e de todo o peso moralista de uma época opressora em seu estado mais cru e sangrento, logo, estamos falando de artistas extremamente ousados e corajosos. O ator Emiliano Queiroz interpretou Geni. Meus pais assistiram à Ópera naqueles tempos e o disco rodava sem parar na nossa casa. Chico induziu para o óbvio na letra e deu uma guinada, um incrível “plot twist”, no espetáculo. Magistral.
Geni e o Zepelin virou um hino, um ícone LGBTQI numa época em que nem existia essa sigla. Uma personagem tão marcante que foi (mal) absorvida pelos homofóbicos e transfóbicos de sempre, que transbordaram como de hábito para suas crianças e estas apelidaram qualquer menino gay como Geni. Um verso dava uma pista para isso: “É a rainha dos detentos”. O nome virou chacota e bullying em muitas escolas, inclusive na minha, também muito antes deste termo aparecer. Não havia a menor sombra de dúvida de que Geni era uma travesti.
“(…) Joga pedra na Geni / Joga bosta na Geni/ Ela é feita pra apanhar/ Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um/ Maldita Geni”
Corta para 2025. Ditadura (ainda que sempre ameaçando retornar) finada. Não há mais necessidade de ocultar nada e a música segue viva na história brasileira. As novas gerações nunca viram a peça Ópera do Malandro e não estão mais no tempo dos torturadores e generais retratados no filme “Ainda estou aqui”, mas vivem na era do país que mais mata a população trans no mundo… pelo 15º ano consecutivo. Uma comunidade que se organiza cada vez mais para sobreviver e viver.
Em 2025, uma escola de samba — a Paraíso do Tuiutí — emocionou o carnaval trazendo como enredo Chica Mani Congo, a primeira travesti de que se tem notícia no Brasil. A autora trans Amara Moira escreveu e lançou por uma grande editora, a Companhia das Letras, um livro inteiro em Pajubá, idioma inventado e popularizado pela comunidade travesti, bebendo na fonte do idioma iorubá falado nos terreiros. O país tem deputadas, deputados, vereadores e vereadoras trans. Artistas as mais variadas e com sucesso pop.
Então, é excelente o momento para reforçar as humanidades em um filme caprichado, que não exalte representatividade das diversidades de forma vazia como peça de marketing, mas com a naturalização das presenças em todos os espaços. Ótimo momento para trazer uma Geni trans gloriosa, linda, transbordando talento, emoção, crítica, afronta à hipocrisia. … certo? Errado. A produção optou pelo não enfrentamento na questão de gênero proposto na obra que a inspirou.
Nos últimos anos, muito se falou da desnecessidade em ser mulher para condenar o machismo e o feminicídio ou negro para combater o racismo, gay para combater a homofobia e trans para brigar contra a transfobia. Estas deveriam ser questões de todos e todas porque permitir a retirada de cidadania destes grupos é atentar contra a própria liberdade do ser.
Muito se falou também em “lugar de fala”. Tanto que virou uma expressão desgastada, um conceito que cada um vai usando e modificando a seu bel prazer, sem atentar para o fato de que ele, ao fim e ao cabo, pede voz e não silenciamento. Evocá-lo para não dar protagonismo aos que pouco tiveram isso ao longo da história é um enorme equívoco, para dizer o mínimo. Por outro lado, trazer esta expressão como limitadora, censora, impeditiva de exercer um olhar a partir de outro ponto de vista, é um erro ainda maior.
Poder a arte pode tudo. Não há dúvida. O que cansa é mais uma polêmica que dá a sensação de uma corrida em círculos.
Deveria estar posto que este, como qualquer campo da vida humana, é um terreno de escolhas e como tal implica em abdicar de possibilidades. No entanto, em tempos de conexão e internet, estas escolhas poderão ser questionadas de forma imediata e por vezes, implacável. Democracia é também sobre isso e mudar os rumos ou não também pode e dever ser uma escolha.
Chico não entrega o jogo todo na música e idealizou uma obra complexa e profundamente atual até hoje. Uma obra prima. Geni fala de hipocrisia e A Ópera do Malandro sobre poder, opressão, resistência, transgressão, malandragens (assim, no plural), coragem, valores, vida …e morte.
Geni pode ser uma mulher cisgênero? Pode. Todavia, dado todo o contexto, a pergunta a ser feita é se deve. Talvez não seja difícil encontrar uma resposta.
“(…) Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni”
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