Por Luna Vargas*
Durante uma vigília realizada em São Paulo para pressionar o governo brasileiro a romper relações com o Estado de Israel, ficou evidente a postura contraditória do governo: discursos contra o genocídio, enquanto, na prática, apoia o extermínio do povo palestino ao fornecendo petróleo e investindo diretamente na indústria de armas e espionagem. Isso é fazer um jogo duplo e demagógico.
O que ainda não está claro para muitos é que o governo brasileiro também conduz seu próprio genocídio, o da população negra, utilizando armamentos israelenses. Existe uma conexão direta entre o genocídio em Gaza, o extermínio de comunidades negras nas periferias urbanas do Brasil e a atual política de drogas do país. Para deixar explícito: as autoridades brasileiras compram armamento de guerra israelense para combater a mítica guerra às drogas, que mata 6.500 pessoas por ano e 75% delas negras.
É por isso que prefeitos e secretários de estado de Minas Gerais, Paraíba, Goiás e Rio de Janeiro estiveram recentemente em Israel. Durante esse “turismo de guerra”, esses gestores participaram de feiras de tecnologia militar, onde foram vendidos os mesmos armamentos usados contra os palestinos. Só para dar um exemplo, o estado de São Paulo mantém contratos com três empresas israelenses, que somam mais de R$ 37 milhões. Outro exemplo: em 2023, os estados da Bahia, Distrito Federal, Pará, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo destinaram juntos R$ 7,7 bilhões para a aplicação da Lei de Drogas. A maior parte desses recursos foi para reforçar o aparato policial com armas e efetivo.
A morte dos negros do Brasil não é ao acaso, elas geram muito dinheiro. Em 2023, os estados da Bahia, Distrito Federal, Pará, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo destinaram, juntos, R$ 7,7 bilhões para a implementação da Lei de Drogas, segundo uma pesquisa do CESEC. Esse valor inclui despesas com Polícia Militar, Polícia Civil, Ministério Público, Defensoria Pública, Tribunais de Justiça, Sistema Prisional e Sistema Socioeducativo, sem contar outros estados e outras frentes, como comunidades terapêuticas.
A engrenagem que oprime palestinos e brasileiros faz parte da chamada Economia do Genocídio. Uma máquina de lucro sustentada por políticas sionistas de Israel e racistas do Brasil às custas do sofrimento de milhares de famílias brasileiras. Visualizar esse cenário não é difícil, o desafio está em como desatar esse nó. E para encontrar a ponta do novelo emaranhado, é preciso entender alguns pontos fundamentais.
O primeiro ponto é que vivemos em um sistema capitalista que utiliza o racismo como forma de ampliar seus lucros. Para manter populações vulneráveis sob controle, esse sistema expõe determinados grupos sociais, sobretudo negros, indígenas e pobres, a diferentes formas de morte: pelas armas, pela falta de saneamento, pelo abandono da saúde pública ou pela negação do direito à moradia. Isso não é um acidente ou reflexo de subdesenvolvimento; é parte de um projeto político-econômico estruturado para garantir a acumulação de poder e riqueza à custa da vida de muitos.
O segundo ponto é que, para que exista racismo e a diferenciação entre pessoas, foi necessário primeiro desumanizá-las. As pessoas das favelas, prisões, territórios indígenas, pessoas LGBTQIA+ são tratados como não-ser, descartáveis pelo sistema. Nesses espaços, a violência é norma, e a existência não precisa ser justificada porque a humanidade já foi negada.
O terceiro ponto é entender que tanto o capitalismo quanto o racismo se refinam e se adaptam ao longo da história, assumindo novas formas conforme o contexto. A guerra às drogas é um exemplo desse processo: embora o uso de substâncias ocorra em todas as classes sociais, certas drogas são deliberadamente estigmatizadas para atingir populações específicas. Há mais de 100 anos, essa guerra promove um estrago irreparável à humanidade, sustentada por uma ciência enviesada que colonizou a mentalidade do planeta com a falsa ideia de que as drogas são o grande problema da sociedade e responsáveis pela violência e outras mazelas sociais. Essa narrativa serve de justificativa para a eliminação sumária e prematura de pessoas que vivem na zona desumanizada e sem direitos.
Quando encontramos a ponta desse novelo, a guerra às drogas, e começamos a desembaraçar o emaranhado, chegamos inevitavelmente ao sistema capitalista. Por isso, os primeiros passos para descolonizar a mente em relação às drogas é construir novas políticas que passam por recontar a história das drogas à contra-pelo, ou seja, recontar a partir do ponto de vista dos oprimidos.
Uma ferramenta central nesse processo é o conhecimento científico sobre as drogas e sua difusão com honestidade e coragem. Por décadas, a produção acadêmica serviu mais à repressão do que à verdade, reforçando mitos, medos e políticas fracassadas. Romper com isso exige uma comunicação que encare de frente os tabus, crenças e dores profundas que moldam nossa percepção social. Defender a vida sem criminalizar as drogas é fundamental e poucos estão dispostos a enfrentar: uns por ignorância da história e da ciência, outros por covardia diante do sofrimento de milhares.
No Brasil, o debate sobre raça e segurança pública frequentemente evita o cerne da questão: a guerra às drogas. Em todo o espectro político, da esquerda radical à direita, há um silêncio calado pelo medo, alimentado por um tabu que impede qualquer discussão séria sobre as drogas. Esse silêncio é cúmplice. Impede que se defenda a liberdade individual, a saúde pública e a segurança real da população. E, pior, serve como munição ideológica e literal para sustentar o genocídio da população negra e periférica.
A guerra às drogas é, ao mesmo tempo, causa, pretexto, justificativa e motor das políticas racistas do Estado. Ela é o fio da meada que entrelaça o massacre do povo negro no Brasil com o genocídio do povo palestino em Gaza. O trabalho de todos que são contra qualquer opressão é lutar por política de drogas antirracista e revolucionária: pautada na ciência, na escuta das experiências e no compromisso com a justiça. Nossa vigília continua: até que a Palestina seja livre e que pessoas negras possam viver com dignidade e em paz.
Referencias:
Carl Hart, “Drogas para Adultos”
Cesec, Drogas: quanto custa proibir, “Um tiro no pé
Frantz Fanon, “Pele negra, máscaras brancas”
Ruth Wilson Gilmore, “Califórnia Gulag: prisões, crise do capitalismo e abolicionismo penal”
*Antropóloga, Educadora e Fundadora da Inflore
Pergunte ao Chat ICL
Relacionados
Palestinas no Brasil usam redes contra genocídio e estereótipos
Mulheres palestinas furam bloqueio das redes sociais para divulgar informações no Brasil
Tropas de Israel têm ordem de atirar em moradores de Gaza que buscam ajuda, diz jornal
Centenas de palestinos foram mortos, levando a promotoria militar a pedir uma revisão de possíveis crimes de guerra
Políticos brasileiros que viajaram a Israel e ficaram em bunkers tiveram doutrinação sobre Gaza
O representante de Israel divulgou várias informações questionáveis aos representantes brasileiros