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Por Jeniffer Mendonça — Ponte Jornalismo

“Esse aqui é o nosso mais novo brinquedinho”, anunciava o prefeito delegado Eduardo Boigues (PL) ao apontar a câmera do seu celular, durante uma transmissão ao vivo, para um caminhão cinza, com partes da lataria de estampa camuflada e sirene piscando. Na volta completa para mostrar o veículo, aparecem o emblema da Guarda Civil Metropolitana (GCM) de Itaquaquecetuba, localizada na Grande São Paulo, e a frase “depois do Tempestade, vem a calmaria”.

O caminhão batizado de Tempestade é semelhante aos adquiridos pela Polícia Militar do Estado de São Paulo em 2014 para coibir manifestações de rua. O veículo blindado ostenta uma mangueira, parecida com um mini-canhão na parte superior, para lançar jatos de água — usados, diz a prefeitura, para dispersar bailes funks. O custo, em 2023, foi de R$ 950 mil.

O prefeito Delegado Eduardo Boigues e o secretário municipal de Segurança Pública Anderson Caldeira posam em frente ao caminhão “Tempestade”, da GCM de Itaquaquecetuba. (Foto: divulgação/Prefeitura de Itaquaquecetuba)

Blindados que parecem carros-fortes, semelhantes aos “caveirões” da Polícia Militar do Rio de Janeiro, também já fazem parte das guardas municipais de Campinas e de Limeira, no interior paulista, sob a justificativa de combate ao crime organizado, por exemplo.

Fardamento escuro, símbolo de caveira nos uniformes e nas insígnias, boinas e armamento pesado, como fuzis e carabinas, além de “tropas de elite”, que costumam ser associadas à imagem das polícias estaduais, estão ficando cada vez mais frequentes em uma corporação originalmente desenhada na Constituição Federal de 1988 para outras funções. “Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações”, diz a carta.

A demanda social por segurança nas grandes cidades fez com que a utilização da GCM contra o crime se transformasse em bandeira político-eleitoral dos principais candidatos a prefeito pelo país afora. Em consequência, casos de abuso de autoridade e violência por parte dos agentes passaram a ser comuns — e a letalidade da corporação também. Um levantamento exclusivo feito pela Ponte apontou que guardas municipais mataram quase 200 pessoas nos últimos 7 anos só no estado de São Paulo.

Na avaliação do advogado Eduardo Pazinato, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, essa reprodução de características de forças policiais militares pelas GCMs viola o Estatuto Geral das Guardas Municipais, que veda “denominação idêntica à das forças militares, quanto aos postos e graduações, títulos, uniformes, distintivos e condecorações”.

“O que a guarda não pode e nenhum gestor deve, porque isso inclusive poderia caracterizar prática de crime, é dotar sua guarda municipal com uma estrutura, um padrão de formação, capacitação e mesmo símbolos que remetam a quaisquer referências militares ou militarizadas”, afirma.

Para parte dos pesquisadores ouvidos pela Ponte, porém, esse parece ser um caminho sem volta. “Quando você olha a evolução do papel das guardas municipais [no Brasil hoje], muitas você pode dizer que já atuam como polícia e têm atribuições de repressão à criminalidade como a polícia, dependendo do tanto de recursos que ela tem em determinado município”, analisa Almir Oliveira Junior, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Brasão de braçadeira da ROMU da GCM de Itanhaém (SP) tem símbolo de caveira. (Foto: Prefeitura de Itanhaém)

“Rota” municipal

Se as polícias militares são criticadas por manterem até hoje vinculação ao Exército e ao modelo ditatorial, as guardas municipais, por outro lado, têm atuado de forma conveniente ao que o(a) prefeito(a) de cada cidade pensa, por conta de lacunas que ficaram desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a reivindicação de maior protagonismo dos municípios na segurança pública.

Em sua origem, a criação de guardas no Brasil remete à época do Império, em 1831. No século seguinte, após a proclamação da República elas perderam participação no policiamento. Durante a ditadura militar (1964-1985), estados como São Paulo conferiram essa atribuição à Força Pública que, mais tarde, se tornaria a Polícia Militar. Na capital paulista, a GCM só retornou formalmente no modelo semelhante ao que conhecemos hoje em 1986, na gestão do prefeito Jânio Quadros.

Na discussão da Constituinte, o intuito era formalizar as funções de uma corporação que já existia em algumas cidades com um papel de vigilância de bens e serviços. Na época, havia forte pressão por parte de segmentos conservadores, policiais e militares, para que a nova carta não modificasse a estrutura policial — como explica José Douglas dos Santos Silva, professor do Instituto Federal do Pará (IFPA) e autor de uma tese de doutorado que investiga o processo de militarização em guardas municipais da região metropolitana de São Paulo.

“A Constituinte não atribuiu às guardas esse caráter de polícia, de policiamento ostensivo, que a gente vê hoje”, diz o professor, ao mencionar as atas de discussão da Assembleia Nacional Constituinte, de 1987 e 1988, em que parlamentares constituintes chegaram a debater se o nome “guarda” era ou não o mais adequado, para enfatizar entre suas atribuições a “proteção patrimonial”.

Reprodução da reportagem do jornal Folha de S.Paulo sobre a criação da ROMU, em 14/09/1993

Até que em 1993, o coronel da PM Luiz Gonzaga de Oliveira, que coordenava a GCM paulistana, resolveu fazer um experimento na gestão do prefeito Paulo Maluf: criou a Rondas Ostensivas Municipais (ROMU), primeira “tropa de elite” da guarda no “padrão Rota”, em referência às Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a famosa força especial da Polícia Militar. “Para tanto, os sapatos, quepes, revolver 38 e o carro Gol das equipes das guardas municipais foram substituídos por coturnos pretos, boinas, carabinas e carros veraneios. Os próprios veículos apresentavam adesivos nas laterais, com o nome RONDA em letras garrafais”, descreve José Douglas.

Jornais da época chegaram a registrar a criação desse novo grupamento como “Rota municipal”, em reportagens nas quais o coronel Gonzaga chega a chamar os guardas de “policiais” — e diz que atuarão para dar apoio às ações da polícia na periferia e combater o crime organizado.

Coronel Gonzaga, que foi chefe da Rota em 1985, conduziu o inquérito no âmbito da PM sobre o Massacre do Carandiru que não responsabilizou nenhum agente pelas 111 mortes na Casa de Detenção de São Paulo.

O experimento da gestão Maluf durou até 1995, em meio a críticas tanto por parte de integrantes da Rota e sindicatos de guardas, quanto por juristas e entidades de direitos humanos. “Começou a haver um questionamento sobre essa atuação repressiva, tanto por concorrer com as polícias quanto pelos casos de letalidade [em ações da GCM], até que esse grupo foi enfraquecendo”, conta o pesquisador.

Contudo, o modelo ROMU inspiraria guardas de outras cidades a criarem esse tipo de grupamento, retomando, inclusive, a nomenclatura para se aproximar das tropas de elite. Em sua tese, publicada em 2021, o professor do Instituto Federal do Pará mapeou que, das 39 cidades da Grande São Paulo, 33 tinham secretarias de Segurança Pública na época. E, entre essas, 23 apresentavam tropas especiais do tipo ROMU ou ROMO — a Ronda Ostensiva Motorizada. O modelo voltou e não parou.

Guardas no debate nacional

No decorrer dos anos 1990 e no início dos 2000, episódios de violência e letalidade policial, criticados por movimentos que buscavam reformas voltadas aos direitos humanos em uma recém-nascida democracia pós-ditadura, pressionaram por uma atuação mais presente do governo federal na segurança pública.

Os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e os mandatos de Lula (2003-2010) fizeram forte sinalização no sentido de incluir os municípios na agenda de segurança pública por meio da distribuição de recursos. O Fundo Nacional de Segurança Pública, em 2001, o Plano Nacional de Segurança Pública, em 2003, no qual se previa a criação de um Sistema Único de Segurança Pública (Susp) — algo só transformado em lei em 2018 –, e o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), de 2007 a 2012, são exemplos dessa federalização.

“O Pronasci foi uma grande novidade porque foi a primeira vez que houve um programa estruturante do governo federal, com um financiamento na ordem de R$ 1,7 bilhões por ano”, lembra Eduardo Pazinato, que foi secretário municipal de Segurança Pública e Cidadania de Canoas, no Rio Grande do Sul, no período.

O Estatuto do Desarmamento, de 2003, previa porte de arma para guardas municipais apenas nas capitais e cidades com mais de 50 mil habitantes. Porém, em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a autorização não dependeria do número da população, por considerar tal restrição inconstitucional.

Moradores da região da ‘Cracolândia’ protestam contra a ação da prefeitura diante da GCM, no dia 24/5/2017, em São Paulo. (Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo)

Os ataques do PCC

No caso de São Paulo, os ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) a agentes públicos e o revide que teve seu auge nos Crimes de Maio de 2006 também empurraram as GCMs a mudar sua lógica de atuação, em meio ao fortalecimento da agenda da segurança pública no país. “As guardas começam a entrar nos anos 2000 com um trabalho comunitário, preventivo, amparado numa gramática de direitos humanos, mas ao mesmo tempo operavam uma cultura de trabalho ostensivo, repressivo”, diz o professor do Instituto Federal do Pará.

José Douglas, que acompanhou treinamento e entrevistou integrantes de uma ROMU na Grande São Paulo, lembra que guardas relatavam procurar, por conta própria, treinamentos táticos dados por policiais pela ideia de que “se o crime mudou, a guarda tem que mudar”. “Eles falavam que a proteção patrimonial era um modelo antigo, o modelo do guardinha, desvalorizado”, diz.

Almir Oliveira Junior, do Ipea, demarca a 1ª e única Conferência Nacional de Segurança Pública, em 2009, como o momento em que se questionou nacionalmente o monopólio da segurança pelas polícias estaduais e em que municípios passaram a tomar para si a responsabilidade de lidar com a violência. Naquele mesmo ano, em São Paulo, o prefeito Gilberto Kassab retomava o modelo “Rota” para a GCM, com a criação da Inspetoria de Operações Especiais (IOPE).

Esse grupamento passou a receber destaque mais recentemente pela repressão na Cracolândia, como é conhecida a cena aberta de uso e venda de drogas no centro da capital paulista. Em 2021, a IOPE recebeu fuzis e carabinas da gestão do atual prefeito Ricardo Nunes (MDB). A atuação gerou uma ação civil pública na qual o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou, em junho deste ano, que a GCM fosse proibida de fazer operações com uso de bombas, balas de borracha e expulsar pessoas do fluxo.

Parte dos integrantes da IOPE está na mira do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) por suspeita de criar uma milícia na região. Ao menos quatro guardas são acusados — e outros 22 investigados — por participar de um esquema de cobrança de taxa mensal a comerciantes e moradores para afastar o fluxo de dependentes químicos e pessoas em situação de rua.

Almir Oliveira ressalta que essa “disputa de atribuições” sempre esteve presente a partir do momento em que as prefeituras passaram a colocar, no comando da corporação, pessoas com carreiras provenientes das polícias Civil e Militar — algo que não foi mais permitido com a sanção do Estatuto Geral das Guardas Municipais, em 2014, no primeiro mandato Dilma Rousseff. O Estatuto, no entanto, não impede que isso ocorra na chefia das secretarias municipais de segurança.

“Essa cultura de ser polícia já está arraigada nas guardas municipais e as prefeituras reivindicam esse espaço de tirar o monopólio do uso da força [pelo governo estadual]”, avalia o especialista.

Prova disso foi o aumento de 35,7% do número de guardas municipais no país entre 2013 e 2023, enquanto as polícias militares encolheram 6,8%, segundo estimativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública — que fez um raio-x das forças de segurança no Brasil a partir do cruzamento de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Em São Paulo, até 2019, 214 dos seus 645 municípios tinham criado sua guarda municipal.

Outra informação que corrobora a influência das polícias nas GCMs: dos 1.419 cursos de formação de profissionais da guarda existentes no país em 2019, 31,5% eram fornecidos pelas próprias GCMs, 19,1% eram realizados pela Polícia Militar, 8,8% pela Polícia Civil e 8,1% pelo Corpo de Bombeiros. Os dados são da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic), do IBGE, o mais recente sobre a área de segurança pública no âmbito municipal.

Há uma disputa de interpretações sobre as consequências estatuto. Alguns pesquisadores avaliam que o texto abriu uma brecha ainda maior para que as guardas atuem como polícias por incorporar em suas atribuições princípios como a proteção da vida, o patrulhamento preventivo, a inibição de infrações penais e a colaboração com os demais órgãos de segurança.

Outros setores entendem que a lei do governo Dilma deu maior segurança jurídica para a competência das guardas. “O que são bens, serviços e instalações do município na cidade? Se um roubo de celular acontece na rua, a rua é parte do município”, explica Ramon Soares, vice-presidente da Associação Nacional de Guardas Municipais do Brasil (AGM Brasil). “A Constituição diz que cabe às polícias militares o policiamento ostensivo, mas não fala em exclusividade. Ostensivo é visibilidade, é mostrar presença. Assim como a PM só pode prender em flagrante, qualquer um, assim como a guarda, também pode porque não podemos nos omitir”, explica.

Para Reinaldo Monteiro, presidente da mesma associação, o problema não é a legislação, mas como as prefeituras têm descaracterizado o papel das GCMs. Um exemplo seria a indicação de pessoas provenientes da PM para comandar secretarias municipais de Segurança Pública (que às vezes recebe o nome de Defesa Social ou Segurança Urbana) às quais a GCM é subordinada. No caso de Itaquaquecetuba, citada na abertura da reportagem, o atual secretário é um coronel da reserva da PM e o prefeito, que é proveniente do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra), um grupo especializado da Polícia Civil, foi autor da lei que criou uma ROMU na cidade em 2022.

“Eles vão trazer para dentro da guarda aquilo que fizeram a vida inteira como militares e ficam copiando coisas que não funcionam nas polícias militares. Isso é péssimo para as guardas municipais. Por isso que nós da AGM Brasil somos 100% contra a militarização das guardas municipais”, afirma.

Reinaldo também afirma existir um lobby político voltado à ampliação de contratação de efetivo e aquisição de armamento e viatura, mas sem propostas que modifiquem de fato a segurança na cidade. “Na maioria dos estados as operações, que deveriam ser pontuais, se transformaram em regra, mas não têm bons resultados”, critica. “Quando falo de política de segurança pública, existe um papel transversal das ações de segurança que devem estar alinhadas com políticas de habitação, assistência social, proteção para as pessoas em estado de vulnerabilidade, para mais crianças estarem nas escolas, frequentando espaços públicos culturais… Ou seja, não dá para você pensar em segurança somente a partir do órgão de segurança pública ou do órgão policial.”

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Interior de viatura da ROMU de São José dos Campos, no Vale do Paraíba, com estrutura para armamento pesado. (Foto: Adenir Britto/Prefeitura de São José dos Campos)

Polícia municipal

Em 2023, foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 57, que busca transformar a guarda municipal em polícia municipal. O projeto, do ex-deputado federal Jonas Moura (PSD/RJ), que foi GCM e disputa uma vaga na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, tem coautoria de outros 325 deputados. A maioria é de legendas do campo da direita e da extrema direita, mas também há assinaturas de partidos de centro-esquerda: 31 parlamentares são do PT, 11 do PDT, oito do PSB e quatro do PV. A relatora é a deputada Delegada Adriana Accorsi (PT/GO), que concorre à prefeitura de Goiânia e é a favor da PEC.

Em junho, uma audiência pública na Câmara dos Deputados com a participação de 400 agentes, dentre representantes de entidades e sindicatos voltados às guardas, reivindicaram a aprovação do projeto.

Na ocasião, Luiz Vecchi, presidente da Federação Nacional de Sindicatos de Guardas Municipais (Fenaguardas), declarou que uma das motivações da PEC seriam decisões judiciais “conflitantes” em relação a prisões feitas por guardas. “Enfrentamos desafios consideráveis devido à falta de uma regulamentação clara e específica que nos assegure direitos com precisão e a ausência dessa base legal e robusta tem levado a interpretações variadas e muitas vezes conflitantes por parte de algumas turmas do Superior Tribunal de Justiça, gerando insegurança jurídica”, defende.

O STJ, especialmente em casos relatados pelo ministro Rogerio Schietti, já anulou prisões realizadas por guardas decorrentes de enquadros por fundada suspeita por entender que não cabe à corporação fazer abordagens como a PM.

O ministro já demonstrou preocupação com as reivindicações de “polícia municipal” e a ausência de controle externo efetivo. “Ora, se mesmo no modelo de policiamento sujeito a controle externo do Ministério Público e concentrado em apenas 26 estados e um Distrito Federal já se encontram dificuldades de contenção e responsabilização por eventuais abusos na atividade policial, é fácil identificar o exponencial aumento de riscos e obstáculos à fiscalização caso se permita a organização de polícias locais nos 5.570 municípios brasileiros”, escreveu Schietti em voto que reafirmou decisão do STF que reconhece a guarda como integrante do sistema de segurança pública, sem no entanto ter atribuições típicas de polícia.

Em 2017, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) proibiu a Prefeitura de São Paulo de utilizar a expressão “polícia municipal” após o então prefeito João Doria ter divulgado um novo layout das viaturas da GCM. Na decisão, o TJ-SP acatou a um pedido da Defenda PM, uma associação de oficiais da Polícia Militar. O tribunal entendeu que não cabia ao executivo municipal acrescentar uma atribuição que constitucionalmente não é da guarda e que a medida, além de confundir a sociedade, geraria “gasto público indevido”.

A PEC não é um consenso entre as entidades. Reinaldo, da AGM Brasil, entende que a mudança de nome é uma “discussão rasa de quem é polícia e de quem não é”, sem abarcar problemas estruturais. Para ele, enquanto representante do Estado, a guarda tem poder de polícia no sentido administrativo, ou seja, não lhe cabe fazer enquadros aleatórios, mas garantir a ordem pública e realizar o controle de atividades individuais e coletivas com o intuito de garantir o bem-estar social, como definido no Código Tributário.

“De que adianta você ter o nome de polícia e ganhar um salário de R$ 2 mil, R$ 3 mil? Enquanto tiver policiais militares ou guardas municipais mal pagos, mal estruturados, muitas vezes sofrendo assédios morais dentro de algumas corporações, com problemas psicológicos gigantescos por conta de perseguições políticas, não adianta se chamar polícia ou guarda se essa corporação está doente”, diz.

GCMs da IOPE revistam pessoas na ‘Cracolândia’, em SP, dia 14/06/2022 | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

GCMs da IOPE revistam pessoas na ‘Cracolândia’, em SP, dia 14/06/2022. (Foto: Daniel Arroyo/ Ponte Jornalismo)

‘Pautas irracionais’

A mesma AGM Brasil foi responsável por ingressar com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 995, que foi acatada pela maioria dos ministros do STF no ano passado sobre o reconhecimento da guarda como integrante do sistema de segurança pública.

Há pesquisadores que entendem que os ministros perderam a oportunidade de ressaltar e especificar melhor as atribuições da guarda, já que houve divergências de visão até entre os que votaram a favor da APDF. “É fato que o Supremo Tribunal Federal não transformou as guardas em ‘polícias militares municipais’.  Por outro lado, o STF não impediu que as guardas se transformem em polícias militares municipais”, ironizou Luis Flavio Sapori, professor da PUC-MG e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, na época.

“Quando a Constituição diz que segurança pública é um dever do Estado, não é governo estadual, é Estado enquanto unidade administrativa”, defende Reinaldo, ao mencionar o artigo 144. Para ele, incluir as guardas nesse artigo proporcionaria uma regulação mais clara nessa área e delimitaria melhor os papeis de cada órgão, para que as guardas atuem, como previsto no estatuto, nas rondas escolares, na fiscalização de trânsito, na pacificação de conflitos como atuação em violência doméstica, na preservação do patrimônio, na proteção ambiental ou no apoio à defesa civil, por exemplo.

“O município tem, sim, o dever na segurança pública e ele tem mecanismos para atuar na atenção primária relacionada à proteção da sociedade”, sustenta. “Eu vou estar fazendo a segurança pública básica e vou liberar as polícias militares dos estados para combater os crimes de maior potencial ofensivo. Ou seja, a Polícia Militar vai ter condição de empregar seu material humano no combate ao tráfico de armas, ao tráfico de drogas, roubo à banco, reforçar o policiamento nas rodovias, reforçar as equipes antissequestro e trabalhar no combate ao crime organizado.”

Na visão dele, o controle externo da atividade das guardas é de competência do Ministério Público e também das ouvidorias externas e independentes do comando das guardas, conforme previsto no estatuto. Por outro lado, Reinaldo sinaliza que nem todas as corporações têm seguido esse modelo: algumas secretarias criaram ouvidorias internas, desrespeitando a lei. “Nossa ideia é fazer com que as guardas municipais tenham cada vez mais o entendimento do seu papel no contexto da segurança pública a partir de uma visão de defesa dos direitos humanos e de preservação do respeito à dignidade da pessoa humana”, diz.

Para Eduardo Pazinato, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a militarização das GCMs é um sintoma dos problemas de segurança pública do país hoje. “São pautas que lidam com percepção, sentimento, medo, insegurança, fatores irracionais. Muitas vezes isso acaba gerando convencimento até por uma situação de um aparente acolhimento, conforto, que essa fala, na linha de lei e ordem, pode gerar no imaginário da sociedade. Mas na prática, obviamente, não será militarizando as guardas municipais que a gente vai resolver os problemas de segurança do Brasil”, acredita.

Para José Douglas, professor do IFPA, a perspectiva de um policiamento comunitário só é possível quando o país resolver seu passado com a ditadura militar e combater “uma visão bélica” na segurança pública. “É um resquício desse processo mal resolvido nosso, que alguns chamam de transição fardada. Se não resolver o problema dessas instituições militares na segurança pública, vamos consolidar mais uma instituição dentro da rede de segurança pública sem regras claras e muito próxima desse universo militar — o que é um perigo.

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