Guerras: ontem como hoje?
Guerra e Paz, esta inclassificável obra sinfônica de Liev Tolstói, surpreende seu leitor em suas, digamos, primeiras 100 páginas.
(Isto é, como diria o severo e precoce crítico João Vicente, “um pouquinho de quase nada” das 1400 páginas do romance.)
Ora, confiante no título e, sobretudo, na ordem dos termos – que, em literatura, altera e muito a equação – a leitora aguarda, como em A cartuxa de Parma, de Stendhal, uma entrada literalmente in media res nos campos de batalha, nos quais se desenrola o drama de Fabrice Del Dongo. Com efeito, a abertura do romance é tão informativa quanto eloquente:
“No dia 15 de maio de 1796, o general Bonaparte fez sua entrada em Milão à frente desse jovem exército que acabara de passar pela ponte de Lodi e de comunicar ao mundo que, depois de tantos séculos, César e Alexandre tinham um sucessor. Os milagres de bravura e de inteligência dos quais a Itália fora testemunha despertaram um povo adormecido; oito dias antes da chegada dos franceses, os milaneses só viam neles uma quadrilha de bandidos, acostumados a sempre fugir diante das tropas de Sua majestade Imperial e real: era, ao menos, o que lhes repetia três vezes por semana um jornaleco do tamanho de uma mão, impresso em papel sujo.”[1]
Pronto: cenário bélico montado, a leitora sabe exatamente o que encontrará ao longo da narrativa. Algo muito diverso, contudo, ocorre na página inaugural de Guerra e Paz. Após deparar-se com duas longas frases escritas originalmente em francês, somos apresentados ao salão da “famosa Anna Pávlovna Scherer, dama de honra e favorita da Imperatriz, ao receber o ilustre e eminente Príncipe Vassíli, o primeiro a chegar à sua recepção”.[2]
Nas próximas 120 páginas segue o desfile da vida cotidiana da elite russa, prioritariamente rstabelecida em São Petersburgo e Moscou. Condes, príncipes, militares, famílias abastadas, famílias empobrecidas, recepções luxuosas e regradas até o último detalhe, heranças legítimas e apropriações indevidas, amores e desenganos, esperanças e malogros – há de tudo um pouco nas vinhas da nobreza da Rússia Tzarista. E, claro, o idioma francês surge como a koiné paradoxal de uma elite que deve se preparar para enfrentar o inimigo maior, ou seja, Napoleão Bonaparte. Será preciso esperar pela abertura da segunda parte para finalmente encontrar a referência inequívoca da movimentação efetiva das tropas:
“Em outubro de 1805, os exércitos russos ocuparam vilas e cidades do arquiducado da Áustria, mais regimentos continuavam a chegar da Rússia e aquartelavam-se junto à fortaleza de Braunau, trazendo grande transtorno para os habitantes, em cuja casa se instalaram. Em Braunau, ficava o quartel-general do comandante em chefe Kutúzov.”[3]
Página 141 da notável tradução do consagrado escritor, Rubens Figueiredo. No entanto, seria ingenuidade imaginar que somente neste instante o “Guerra” do título da obra-prima se justificasse, como se antes estivéssemos no universo oposto da “Paz”. Não se esqueça que a capa do livro promete Guerra e Paz. O sentido da conjunção aditiva já se esclarece na frase de abertura do romance – aquela escrita em francês. Na primeira oração, alude-se à “famille Bonaparte”; na segunda sentença, mencionam-se “les atrocités de cet Antéchrist”.[4] E próximo ao final da primeira parte, lemos a carta redigida por Julie Karáguina. Eis a passagem decisiva: “Tout Moscu ne parle que guerre. L’un de mes deux frères est déjà à l’étranger, l’autre est avec la garde, qui se met en marche vers les frontières. Notre cher empereur a quitté Pétersbourg et, à ce qu’on prétend, compte lui-même exposer sa précieuse existence aux chances de la guerre.”[5]
Assim mesmo no original, no francês do inimigo, o Anticristo Napoleão Bonaparte. A carta de Julie revela a dimensão mais inquietante e verdadeira da guerra: ela invade o dia a dia e ocupa os corações e as mentes de todas as pessoas, mesmo aquelas que nunca se aproximarão da frente de batalha.
Mobilização total: amanhã como ontem?
Em outras palavras, a grande novidade do exército napoleônico implicou a invenção do cidadão-soldado, na mobilização total da sociedade no esforço de guerra; novidade essa que contagiou o próprio cotidiano nacional, seja francês, seja russo. Uma atmosfera similar forjou as gerações que vivenciaram as duas Guerras Mundiais do século XX. Aqui, sempre se trata de Guerra e Paz. Muitas vezes, é preciso não estar no centro da batalha para melhor apreender o sentido mais profundo do conflito. Basta que recordemos a experiência traumática do célebre personagem de A cartuxa de Parma, Fabrice Del Dongo. Envolto num caos absoluto de movimentações vertiginosas, em meio a estampidos incessantes e gritos de dor, tomado pelo pânico da morte provável e até iminente, desorientado pelo frenesi das ações bélicas, Fabrice, no instante em que vivencia o centro da Batalha de Waterloo, esse divisor de águas da história europeia moderna, jamais poderia imaginar que naquele 18 de junho de 1815, após uma feroz batalha, o exército napoleônico seria derrotada pelas forças da Sétima Coligação, formada pelas tropas britânica e prussiana. Atordoado, Fabrice Del Dongo não tinha como saber que era coadjuvante do derradeiro capítulo da trajetória do César e do Alexandre redivivos.
Talvez vocês estejam se sentindo como a leitora das primeiras 100 páginas de Guerra e Paz: mas onde se encontra a guerra cultural que torna incerta a paz?
(Nem preciso escrever, não é? Vocês já sabem: na próxima coluna!)
[1] Stendhal. A cartuxa de Parma. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 31.
[2] Liev Tolstói. Guerra e Paz. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 14.
[3] Idem, p. 141.
[4] Idem, p. 14.
[5] Idem, p. 115.
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