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Evento internacional de capoeira homenageia heróis da resistência e da ancestralidade

Apesar do racismo estrutural e o desamparo, mestre Felipe de Santo Amaro, enxerga um reconhecimento gradual da capoeira
25/01/2024 | 07h52

Por Cristiana Souza*

Mestre Felipe de Santo Amaro da Purificação (Felipe Santiago), de 96 anos, é um dos mais antigos capoeiristas do mundo, com 80 anos de prática e sabedoria na arte do jogo de corpo. Considerando o atual cenário da capoeira no Brasil, mestre Felipe reconhece uma valorização gradual da modalidade em comparação com o passado. Diz que ele e a capoeira surgiram na mesma região da Bahia. “A capoeira nasceu em Santo Amaro da Purificação”, garante, referindo-se à cidade do Recôncavo Baiano.

Discípulo de mestre Vivi de Popó, mestre Felipe comenta sobre o legado de mestre Bimba, e exemplifica a valorização da luta afro-brasileira comparando a própria carreira com a do criador da capoeira Regional. Apesar da vasta experiência e legado, Bimba enfrentou desamparo no fim de sua vida. Já mestre Felipe recebe no próximo dia 30 o título de “Doutor Honoris Causa” pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).

O veterano é uma das estrelas do 5º Rede Capoeira, que acontece até sábado (27), em Salvador, com representantes de todo o Brasil e 20 países. Junto com mestre Amaro, outros treze heróis populares serão homenageados por preservar a capoeira, “uma das maiores divulgadoras da Língua Portuguesa no mundo”, segundo diz Marcos Antônio Batista, o mestre Sabiá. O evento visa promover discussões acerca do futuro dessa manifestação cultural, sua influência global e os desafios que enfrenta.

Reprodução Bruna Laja

Como um tributo aos mestres octogenários, o 5º Rede Capoeira reúne ativistas, artistas e autoridades para discutir o futuro dessa ferramenta de transformação social. Além do mestre Felipe, os outros mestres homenageados são João Grande, Acordeon, Boca Rica, Brandão, Olavo, Pelé da Bomba, Brasília, Virgílio, Cafuné, Carcará, Mestre Curió, Celso e Sombra.

Segundo mestre Sabiá, coordenador do Rede Capoeira, há praticantes em aproximadamente 170 países.  No Brasil e no mundo, os capoeiristas realizam um trabalho social significativo. No entanto, ele ressalta a necessidade de uma reflexão sobre “o olhar honesto” que muitas vezes não é atribuído a essa prática.

“Quando falo de forma mais honesta, quero dizer que não temos coragem de olhar a importância da capoeira. Porque é uma manifestação de origem preta, origem africana. Por que serve para cartão postal, mas não serve para estar na escola? Serve para representar o Brasil no campeonato, no festival de artes marciais, no festival de dança, em tudo, mas não é valorizada?” questiona o baiano.

O mestre também aborda a questão do racismo estrutural, apontando para a necessidade de conscientização mais profunda sobre a percepção da sociedade em relação à cultura afro.

“Muitas vezes a gente não se inclui nesse papel, mas vivemos numa sociedade ainda extremamente preconceituosa onde o racismo estrutural é muito profundo. […] Não  sentimos como parte disso, mas de alguma forma, se não lutamos contra, fazemos parte”, diz ele, referindo-se à inação da sociedade diante do preconceito.

Mesmo após conquistar reconhecimento global, Sabiá diz que a capoeira enfrenta desatenção. Ele argumenta que a atividade muitas vezes é percebida de forma folclorizada, um olhar menor, que, segundo ele, limita a compreensão de seu verdadeiro significado. Sabiá afirma: “A capoeira conquistou o mundo, mas ainda existe uma desatenção ou atenção folclorizada”.

Foto: Arquivo Pessoal/ Simone Souza

Essa desatenção e preconceito que a capoeira encara refletem as “desigualdades sociais e históricas que caracterizam nossa sociedade”, como destaca a historiadora especialista em Relações Étnico-Raciais e Professora Rede Pública de São Paulo, Mônica Faria.

Ela explica que a capoeira é expressão de resistência negra no Brasil durante e após a escravidão.

“Reflete as desigualdades sociais e históricas que caracterizam nossa sociedade. Apesar de hoje proporcionar formas de diálogo que respeitam a diversidade cultural brasileira, a capoeira ainda não está imune à discriminação, que se manifesta por meio de estereótipos e marginalização, impedindo o pleno reconhecimento dessa prática como uma expressão cultural valiosa”, afirma a pesquisadora.

Capoeirista há 44 anos, Sabiá enxerga esses desafios na valorização e conta como, durante esse tempo, assistiu ao fim de vida de muitos mestres.

“Desde que comecei na capoeira, percebo que o final de ciclo para muitos mestres é muito semelhante, um final sem dignidade, com situações extremamente difíceis de sobrevivência”, conta ele. “A maioria desses Mestres sempre passa no final de sua vida por uma desatenção gigantesca. Onde falta dignidade básica. Muitas vezes, por não ter nenhum amparo social, caem numa posição de extrema fragilidade de esquecimento”.

 

NECESSIDADES DO SETOR

Com uma visão crítica, o mestre Paraibano introduz a proposta fundamental do Rede Capoeira: “Trazer essa reflexão, trazer essa consciência de como é importante valorizar em vida todos os mestres. Eles abriram caminho, para hoje, a capoeira estar presente em diversos lugares. Desde a década de 60, pavimentando essa estrada no qual os capoeiristas terminam viajando, trabalhando e existindo nesse mercado como um agente cultural.”

Mestre Sabiá, criador do Rede Capoeira. Foto: Reprodução Bruna Laja/ Agência Brasil

Diante de mudanças na gestão cultural, expressa otimismo, mencionando a presença de uma ministra negra: “Acho que vivemos um momento favorável e saímos de períodos extremamente conturbados, onde a cultura tinha um olhar secundário. Vivemos uma nova gestão. De alguma forma, agora, temos uma Ministra [refere-se a atual Ministra da Cultura Margareth Menezes], que vem de origem popular e provavelmente sentou nesse lugar próximo”.

A discussão se amplia também para a esfera legislativa: “Tentar conversar sobre a Lei dos Mestres [garante auxílio financeiro a pessoas que reconhecidamente representem a cultura brasileira tradicional], que já acontece no Estado do Ceará, no estado de Pernambuco. Como patrimônio vivo [referente aos mestres], de que forma, pode se inserir isso no estado da Bahia, de que forma isso pode ser ampliado a nível Federal?”, ressalta ele.

ANGOLEIRO RAIZ

Em Santo Amaro da Purificação, as raízes da Capoeira Angola se entrelaçam com a própria essência da comunidade. Conforme conta o Mestre Felipe, “a capoeira nasceu ali, em Santo Amaro, como um esporte de raiz africana”.

“A capoeira não tinha um nome. A distinção entre Capoeira Angola e Capoeira Regional ainda não existia”, recorda.

Foi somente com o lançamento da Capoeira Regional pelo mestre Bimba que as modalidades se diferenciaram. A nova abordagem, denominada Capoeira Regional, começou a atrair os praticantes, levando muitos mestres a migrarem para essa modalidade. No entanto, Mestre Felipe permaneceu fiel à Capoeira Angola em Santo Amaro, “Angoleiro raiz”, como diz ele.

Foto: Arquivo Pessoal/ Simone Souza

Esse comprometimento é o legado que mestre Felipe carrega consigo. Hoje, na cidade baiana, ele é considerado uma referência.

Em entrevista, sua filha Simone Ferreira Souza conta que “ele é o mestre mais velho em atividade no Brasil. Não entra mais na roda para jogar, mas entra numa roda para cantar, para tocar, para contar história”, diz ela.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) reconheceu a casa de mestre Felipe em 2020 e elevou ao status de espaço cultural. “A casa se transformou no espaço de convivência e pesquisa onde mestres, professores, acadêmicos, alunos se reúnem para poder buscar conhecimento através da oralidade”, afirma ela.

Ao falar sobre o passado, a escritora da autobiografia de seu pai, intitulada “Mestre Felipe — Eu nasci em Santo Amaro: relatos biográficos e memórias”, destaca que a capoeira, apesar de suas raízes profundas, muitas vezes não recebeu o reconhecimento devido, especialmente para mestres emblemáticos como Mestre Bimba e Mestre Pastinha, que moldaram essa expressão cultural com sua maestria, mas não testemunharam assistência e valorização merecidas.

Simone observa que, paradoxalmente, é “após o falecimento desses mestres que a capoeira começa a ter uma valorização, ainda que de forma tímida.” No entanto, a tendência atual, segundo ela, é de “uma valorização gradual, impulsionada por mestres contemporâneos dedicados ao estudo e à pesquisa, como o Mestre Sabiá.”

Perguntado sobre o que significa a capoeira para Mestre Felipe, ele finaliza declamando seu amor por ela:

“Capoeira me distrai, capoeira me consola, capoeira é minha vida, a capoeira me conforma. Porque ela é plantada no meu coração e enraizada no meu corpo”.

PROGRAMAÇÃO 

25 DE JANEIRO (quinta-feira)

Local: Espaço Cultural Barroquinha.

9h30 às 10h30: “Abre Alas aos Capoeiras”, com Antônio Liberac, Mônica Beltrão e Jorge Columá.

10h30 às 11h: Roda de Capoeira.

16h às 17h30: “Rede Capoeira — Economia Criativa (Mestres dos Saberes)”, com participação de representantes do MINC, IPHAN e IPAC — Leis dos Mestres.

Local: Mercado Modelo.

17h30 às 18h30: “Legados do Mestre João Pequeno”, conta com a Oficina e Roda de Capoeira Angola do Mestre Jogo de Dentro.

18h30 às 20h: “Oficina Mestre João Grande”, com uma Roda de Viola.

20h às 20h40: “Festa de João”, com o Samba de Chula.

21h às 22h30: “Show de Tonho Matéria”.

 

26 DE JANEIRO (sexta-feira)

Local: Espaço Cultural Barroquinha

9h às 13h: “Seletivas Estação Paranauê — Bahia e Mundo”.

15h às 16h30: “Roda de Conversa — Processo de Internacionalização da Capoeira”, com Mestre João Grande, Mestre Acordeon, Mestre Jelon e Mestre Amen.

Local: Mercado Modelo

9h30 às 11h: “Oficina de Berimbau e Pandeiro”, com a Fundação Mestre Bimba.

16h30 às 18h: “Oficina e Roda de Capoeira”, com Mestre Lobão e Acordeon.

18h às 19h30: “Legados do Recôncavo”, com a presença dos Mestres Felipe, Brandão, Adó, Ivan, Goes e Carcará.

19h30 às 20h30: “Show Ganhadeiras de Itapuã”.

20h30 às 22h: “Cortejo e Roda do Bando Anunciador da Capoeira Angola de rua”, com Mestre Lua Rasta e convidados.

 

27 DE JANEIRO (sábado)

Local: Mercado Modelo.

9h às 10h: “Samba de Roda”, com Mestra Nalvinha.

10h10 às 11h30: “Oficina É Regioná”, com Mestre Nenel e Cafuné.

11h20 às 11h50: “Histórias da capoeira e o Mercado Modelo”, com Mestre Nenel e Cafuné.

16h às 19h: “Estação Paranauê — Competição”.

19h às 20h30: “Valeu Rede Capoeira!”, com Show Gerônimo.

Entrada: gratuita

 

*Estagiária sob supervisão de Chico Alves

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