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Andrea Dip

Jornalista investigativa e estudante de psicanálise. Autora do livro-reportagem “Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder". É pesquisadora na Freie Universität de Berlim e apresenta o podcast Pauta Pública na Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

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Imigrantes e trabalhadores engrossam base eleitoral de Trump

Mudança de perfil de quem vota na extrema direita é tendência não apenas nos Estados Unidos
06/11/2024 | 10h00

“O eleitor de direita não tem mais formação universitária. Esses têm votado mais à esquerda. Os trabalhadores com menos educação formal e as pessoas não brancas estão votando mais à direita. Temos que dar as boas-vindas à nossa nova base, mesmo que sejam trabalhadores sindicalizados. As pessoas sem diploma são mais fáceis de alcançar, temos que pensar em como engajá-las. A economia é a chave para falar com as bases, e você fala com as pessoas a partir das emoções. É preciso usar jargões, mudar a linguagem”.

Ouvi esse discurso durante o Berlin Campaign Conference, evento que reuniu políticos e estrategistas de direita na Alemanha há algumas semanas. Brent Buchanan, estrategista político estadunidense e presidente do Instituto Cygnal, baseado em Washington D. C. apontava uma tendência que cresce no mundo todo mas que neste momento pode ajudar a definir as eleições presidenciais nos Estados Unidos — e o jogo político como um todo já que também serão decididos nos próximos dias senadores, deputados, juízes e governadores.

Enquanto escrevo essa coluna, os resultados das eleições norte-americanas ainda não foram totalmente confirmados — já que, né, voto em papel e todo um sistema complicadíssimo — mas neste exato momento, segundo pesquisas e projeções Trump será novamente presidente dos Estados Unidos.

Não é fácil entender como imigrantes e pessoas consideradas “não brancas” nos Estados Unidos podem concordar com os discursos de Trump, desta vez ainda mais violentos, xenófobos, lgbtfóbicos e carregados de teorias conspiratórias surreais. Ele declarou por exemplo que imigrantes ilegais em Ohio estariam comendo animais de estimação da população local, criou um vídeo falso gerado por Inteligência Artificial em que Taylor Swift declarava apoio à sua campanha (o que fez com que a cantora declarasse abertamente seu voto em Kamala Harris), elogiou o personagem do filme “O silêncio dos inocentes” como se fosse uma pessoa real (“o falecido, grande Hannibal Lecter”; “é um homem maravilhoso”) entre outras sandices.

Entre suas propostas de governo estão fazer a maior deportação da história da América, terminar de construir o famigerado muro na divisa com o México, negar a entrada de pessoas vindas de países islâmicos, restringir muito a concessão de asilo político, entre outros. Seus discursos xenófobos e desumanizantes sobre imigrantes foram o grande ponto de sua campanha e ele chegou a descrever a chegada de imigrantes ilegais como “uma invasão” e “o envenenamento do sangue americano“.

Por que então essa virada na base da direita? Em entrevista ao podcast Pauta Pública da última sexta-feira, a professora Cristina Pecequilo, doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, falou um pouco sobre isso: “A sensação é de desamparo. Por que esse eleitor muda para um candidato da direita? Por que essa base eleitoral se reforça?”, questiona ela.

“É por causa da heterogeneidade do eleitorado americano. O imigrante latino, a pessoa que hoje é indocumentada, ou mesmo documentada, já é legalizada, vai ter um perfil diferente num estado como a Califórnia e num estado como a Flórida. Na Califórnia ele vota democrata, na Flórida tem um voto mais republicano porque são imigrantes que normalmente fugiram de situações de autoritarismo em seus países, Cuba, Venezuela, e há um apelo muito grande para esse eleitorado, mesmo para um eleitorado imigrante jovem, de um discurso pró-liberdade, pró-empreendedorismo, a ideia do sonho americano”, afirma Cristina Pecequilo. “Então, esse conservadorismo é explicado por esse perfil”.

“Aí, quando a gente pensa em estados como Nevada, Arizona, o próprio Texas, que tem uma grande população imigrante, é um eleitorado que vai estar dividido. Você vai ter um eleitorado progressista, que vê com muita preocupação as falas do Trump de deportação e também um eleitorado que vê com uma certa tolerância o discurso do Trump de combater o ‘imigrante que comete crimes’ pessoas que vem para os Estados Unidos para cometer crime ou para ‘roubar empregos’”, afirma a cientista política.

“Costumo dizer que Trump trabalha com um tripé: preconceito, medo e ignorância. Então, esse próprio imigrante, às vezes que está vivendo há muitos anos nos Estados Unidos, sente o emprego ameaçado pelo grande fluxo de novas pessoas que estão chegando lá. Aí pega o discurso liberal, pega o discurso do roubar emprego, pegam as fake news associadas a animais de estimação, a violência”. Cristina lembra também que muitas vezes conta o individualismo na hora de votar: “Trump tem essas inclinações autoritárias mas às vezes o eleitor está preocupado com como vai pagar a hipoteca. Ele quer saber de soluções que os partidos vão apresentar para ele”.

Uma outra pesquisa global realizada pela agência Globalcities com mais de 300 mil pessoas em 20 países incluindo o Brasil, mostra que há um grande aumento no desespero e na desilusão dos jovens com a política tradicional, o que explica um crescimento do conservadorismo, em particular entre os homens mais jovens. Como mostra reportagem do Infomoney: “O estudo apontou que ‘sentimentos de desesperança, desilusão social e revolta contra os valores cosmopolitas explicam em parte a ascensão de partidos radicais de direita contra o establishment’, detalhou Martijn Lampert, chefe de pesquisa da agência, citando eleições recentes em vários países europeus”.

Diante de um cenário desolador, de guerras e de múltiplas crises — climática, econômica, neoliberal, sanitária, estética, da própria democracia como a conhecemos — resta pouco espaço para o encantamento e imaginação de futuro, como elabora o professor doutor Paolo Demuru em seu excelente livro “Políticas do encanto” lançado recentemente pela Editora Elefante.

Justamente por isso (não só mas também) orientações políticas e ideológicas têm passado cada vez mais por um circuito de afetos, parafraseando o professor Vladimir Safatle, e subjetividades e se moldado a quem oferece mais soluções (ainda que falsas), discursos negacionistas (não existe crise climática, vai ficar tudo bem) populistas (eu cuido de você como um pai cuida de um filho) e teorias da conspiração. É como se a realidade da vida cotidiana fosse tão angustiante e pobre em maravilha, que acreditar, seguir, “desvendar mistérios” de teorias conspiratórias como a dos imigrantes comendo pets trouxesse um alívio, entretenimento, um pouco de mistério e a noção de pertencimento a um grupo seleto de pessoas que conhecem “a verdade”.

Trump deve ser confirmado presidente nas próximas horas, surfando esse tsunami que destrói tudo por onde passa. Se isso acontecer, um futuro ainda mais sombrio nos aguarda.

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