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Intervenção na Cracolândia expulsa população vulnerável

A dispersão repentina da região escancara política de maquiagem urbana da prefeitura e levanta dúvidas sobre o destino das pessoas
02/06/2025 | 11h16
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Por Carolina Ferreira e Lucas Allabi*

 

Na quarta-feira (14), a Cracolândia, no bairro de Santa Ifigênia, no centro de São Paulo (SP), amanheceu vazia. Os milhares de dependentes químicos em situação de vulnerabilidade que a frequentam diariamente, há mais de uma década, simplesmente desapareceram.

A cena causou espanto às pessoas que vivem ou trabalham pela região. “Achei um pouco estranho. Geralmente os ‘noias’ passam por aqui direto, a gente tem convívio com isso”, conta uma atendente de loja, que prefere não ser identificada.

Após mais de uma semana do “desaparecimento” da Cracolândia, a região permanece deserta. Na sexta-feira (16), o ICL Notícias esteve nas ruas General Couto de Magalhães, dos Protestantes e dos Gusmões —  que formam o centro da Cracolândia — e observou quase nenhum movimento, a maioria dos comércios fechados e algumas viaturas da Guarda Civil Metropolitana (GCM) policiando o local.

Além disso, a tenda de atendimento da prefeitura para usuários de drogas na rua dos Protestantes estava vazia. Os médicos que atendiam os usuários não tinham o que fazer.

Sabino, dono de um estacionamento na rua dos Gusmões há 25 anos, também não presenciou a expulsão das pessoas que frequentavam a “Cracolândia”. “Cadê eles? Ninguém tá achando. Nem os médicos, e nem os perueiros que trabalham com eles tão encontrando. Encontram um pouquinho aqui, dez ali, cinco em outro local, mas aquele monte que ficava aqui não tem mais.”

Cracolândia

Rua dos Gusmões, próxima à rua dos Protestantes, praticamente vazia (Foto: Carolina Ferreira)

O nome Cracolândia, usado com frequência para se referir à área, carrega uma carga pejorativa e estigmatizante. Mas, segundo o relato de um médico voluntário que atua no local, citado pela professora de Arquitetura da USP Nilce Aravecchia, a principal droga consumida ali não é o crack, mas o álcool. “A coisa mais hipócrita é chamar aquele lugar de ‘Cracolândia’; deveria ser chamado de ‘Cachaçolândia’, porque a droga que mais corre por ali é lícita”, afirma.

Com décadas de operações policiais, prisões em massa e promessas de “solução definitiva”, o que se vê é um ciclo que se repete: as pessoas são expulsas de um ponto e reaparecem em outro. Moradores de outras regiões da grande São Paulo relataram que os usuários se deslocaram para outros bairros, incluindo a região do Minhocão, Santa Cecília, a avenida Roberto Marinho e até Guarulhos.

Alguns habitantes de Paraisópolis, na zona sul, também começaram a notar um aumento dos moradores de rua na comunidade, muitos viciados em crack. Renata Alves, integrante do Conselho de Saúde, suspeita que eles estejam sendo transportados até a favela:“As pessoas estão amanhecendo aqui. Quando a gente vai tentar fazer essa abordagem junto com a área da saúde vê que não são pessoas que vêm de lugares próximos. São pessoas que vêm de muito longe, de Osasco, do centro”

O que dizem as autoridades?

As autoridades públicas têm dado diferentes explicações sobre o esvaziamento repentino da Cracolândia.

O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), tentou atribuir a dispersão ao aumento dos atendimentos de saúde e às ações da prefeitura na Favela do Moinho, única na região central de São Paulo, que, nos últimos dias, foi alvo de uma tentativa de remoção  por parte do Governo de Tarcísio.

Segundo Nunes, a redução foi “gradativa” e surpreendeu até mesmo a administração municipal. “Todos os dias vinha reduzindo a quantidade de pessoas lá”, afirmou.

Por outro lado, o vice-prefeito e coronel da reserva Mello Araújo (PL) adotou um tom de vitória. Ele celebrou nas redes sociais o esvaziamento da “Cracolândia” e parabenizou as forças de segurança, incluindo a Guarda Civil Metropolitana (GCM). “Estamos vencendo essa guerra”, disse no Instagram, sem comentar os impactos reais para a população em situação de vulnerabilidade.

Inclusive, Araújo participou, na terça-feira (20), de uma caminhada ao lado de comerciantes no largo de Santa Ifigênia como forma de apoio às operações da prefeitura que “esvaziou” a região.

No entanto, Walter Cintra Ferreira Junior, médico sanitarista na Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo e professor da Fundação Getúlio Vargas, disse que não há muita clareza na operação de dispersão da “Cracolândia”: “A gente não está sabendo o que está acontecendo. Eu acho que, inclusive, seria interessante que os secretários de saúde do município e do estado viessem a público dizer exatamente como é que estão participando dessa intervenção, que eles dissessem como é que está sendo esse relacionamento.”

Cracolândia

A rua dos Protestantes, centro da “Cracolândia”, permanece há mais de uma semana vazia (Foto: Carolina Ferreira)

A Cracolândia não acabou, mas se espalhou

Enquanto a prefeitura comemora a “revitalização” do centro de São Paulo, o que se vê na prática é a repetição de uma velha política: varrer o problema para longe dos nossos olhos, sem enfrentar suas causas.

O “sumiço” repentino das pessoas da Cracolândia acontece em meio a uma série de obras e medidas promovidas pela administração municipal e estadual, que irá construir o novo centro administrativo do governo estadual nos Campos Elíseos, bairro próximo à Santa Ifigênia (bairro original da “Cracolândia”). O projeto prevê a expulsão de 600 famílias que moram em volta da praça Princesa Isabel para dar espaço à nova sede, sob o discurso de “revitalização” do centro.

Além disso, em janeiro deste ano foi construído um muro de 40 cm na esquina da rua dos Protestantes com a Rua General Couto de Magalhães, cujo custo foi de R$95 mil ao cofre municipal.  À época, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo chegou a classificar, em um comunicado, o espaço como um “curral humano”.

A repressão e o controle do espaço público, muitas vezes com violência, têm sido tratados como política de “revitalização”.  “O que estamos vendo é mais uma forma de intervenção urbana que agride as populações vulneráveis”, afirma a professora Nilce. Ela lembra que esse tipo de ação tem raízes históricas. “Remonta, sobretudo, ao começo do século 20, quando São Paulo passou por reformas de embelezamento que expulsavam os pobres do centro da cidade.”

Padre Júlio Lancellotti, que comanda diversas ações de auxílio para a população de rua na cidade, falou em uma missa no começo do mês que: “Dizer que a Cracolândia sumiu e mostrar a rua vazia é peça publicitária. É política da mais baixa qualidade que criminaliza os pobres. Seria bonito dizer que não tem ninguém na rua consumindo drogas porque tem casa pra morar.”

A professora Nilce ainda reitera os motivos em jogo dessas ações da prefeitura na Cracolândia e no centro de São Paulo: “O que a gente vê ali é uma nova rodada histórica de desocupação dos espaços dessa população mais vulnerável, da população mais pobre. E isso se faz às custas da vinculação desses discursos de que a precarização e abandono do espaço, a sujeira, a degradação, sejam causadas por elas. Então o que acontece é uma operação política, financeira, mercadológica e imobiliária  — que também acaba incorporando interesses de uma determinada classe média urbana — que procura recuperar algum glamour no centro da cidade.”

 

*Matéria com supervisão de Bia Abramo

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