Um ano é um tempo tão curto… Mas foi o suficiente para fazer com que eu me sentisse em outro país, apesar de ter me mudado dos Estados Unidos para o Brasil em maio de 2023. Um comercial na televisão me fez estranhar profundamente o lugar onde vivi 35 anos.
Foi durante um jogo de basquete. Na TV, os Celtics, de Boston, lutavam para sobreviver no campeonato nacional dos EUA. Partida boa! No comercial, meu queixo caiu. Entrou na tela uma propaganda de Jesus. Não entendi nada, um anúncio como garantia que Jesus entende os estadunidenses.
Jesus com as sílabas separadas em cores distintas. JES em amarelo. US em azul. Us significa nós, mas também é a forma abreviada e carinhosa com que a população se refere aos Estados Unidos: US, United States.
O amigo ao meu lado, que curtia aquela partida na tarde de domingo novaiorquina, me atualizou sobre a propaganda. Não era a primeira vez que ele se deparava com aquilo. A primeira foi no Super Bowl, a final do campeonato de futebol americano, o evento esportivo de maior público do país e que, por isso mesmo, tem os comerciais mais caros do ano.
E foi lá, naquele espaço disputadíssimo, que muita gente viu, pela primeira vez, o comercial de Jesus em cadeia nacional. Descobri que a produção cara, muito bem acabada, foi obra da Lerma, uma empresa de propaganda de Dallas. A peça publicitária tomou o cuidado de incluir representantes de todas as classes, raças e gêneros em uma situação que reproduz uma cena bíblica. Todos tiveram seus pés lavados por outras pessoas.
Em entrevista ao jornal The Dallas Morning News, Greg Miller, porta-voz da campanha, disse que o objetivo é mostrar que Jesus ama e cuida de todo mundo, sem distinção. O CEO da empresa, Pedro Lerma, postou uma explicação na página que mantém no LinkedIn: “ficamos honrados em compartilhar a mensagem poderosa de Jesus sobre perdão, união e amor”, escreveu.
Os anúncios no Super Bowl, de um minuto e 15 segundos cada um, custaram cerca de US$ 17 milhões. No ano passado, quem bancou a propagada foi a Fundação Servant, uma das doadoras da Aliança em Defesa da Liberdade, organização conhecida por ter patrocinado a decisão da Suprema Corte que acabou com a garantia do direito ao aborto no país, em 2022. A mesma organização ajuda os grupos que combatem o casamento gay e os direitos das pessoas transgênero. Amor, perdão e união, certo? Para uns apenas, pelo visto.
A Fundação Servant não está mais financiando a propaganda de Jesus. Agora é a organização Come Near que paga para colocar o anúncio no ar. E diz, na página do grupo na internet, que Jesus ama os gays, as pessoas trans, e que todos estão convidados a conhecer melhor a história dele. A campanha pró-Jesus já garantiu espaço nas Olimpíadas de Paris e nas convenções dos partidos Republicano e Democrata.
A sensação é de que a religião de fato tomou conta da vida pública nos Estados Unidos. É a rota rumo à teocracia avançando a passos largos? Donald Trump foi eleito, em 2020, com o voto de grupos evangélicos. Escolheu um representante desse bloco como vice. Durante o mandato, indicou três ministros do Supremo.
Organizados, os conservadores cristãos avançaram sobre as estruturas de poder dos Estados Unidos de forma sistemática. De Ronald Reagan a Donald Trump, se associaram ao Partido Republicano e a organização Sociedade Federalista é tida como a principal responsável pela escolha de seis ministros religiosos e conservadores que hoje têm assento na Suprema Corte do país.
Não existe um projeto de transformar os Estados Unidos em uma democracia religiosa. O que se vê na Suprema Corte e até nos comerciais de jogos de basquete é que essa já é uma realidade.
Neste mês de junho o governador da Louisiana sancionou uma lei aprovada na assembleia legislativa do estado que exige mudanças nas escolas públicas. Em todas as salas de aula da Louisiana vai ser preciso fixar na parede um cartaz com letras grandes listando os dez mandamentos. Uma medida que nem as escolas católicas adotam, agora será uma exigência na rede pública.
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