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Após 14 anos, acusado pelo assassinato de Zé Maria do Tomé será julgado

Ativista cearense lutava contra pulverização aérea de agrotóxicos e foi morto em emboscada
09/10/2024 | 13h43

Por Francisco Barbosa — Brasil de Fato

No 21 de abril de 2010, na localidade do Sítio Tomé, no Ceará, o agricultor e defensor dos direitos humanos José Maria Filho foi alvo de emboscada enquanto voltava para casa, sendo executado com mais de 20 tiros. Zé Maria estudava, vigiava e lutava contra a pulverização aérea de agrotóxicos e os danos causados pela prática à saúde da população. Passados 14 anos, finalmente, ocorrerá o julgamento de um dos envolvidos no crime. A ação está marcada para esta quarta-feira (9).

Para ajudar na compreensão da importância do júri, o Brasil de Fato conversou com Renato Roseno, deputado estadual pelo PSOL e presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. O deputado acompanha os conflitos e impactos do agronegócio na região do Vale do Jaguaribe e o caso de Zé Maria do Tomé desde o dia seguinte ao assassinato.

No 21 de abril de 2010, Zé Maria do Tomé foi alvo de emboscada, sendo executado com mais de 20 tiros  (Foto: Reprodução/TJCE)

Quem foi Zé Maria do Tomé?

Zé Maria é um líder camponês, ambientalista, fruto desse processo contraditório e cheio de injustiças que é a expansão do agronegócio no Brasil, que chega a novas fronteiras. Tomé é uma comunidade rural na Chapada do Apodi, em Limoeiro do Norte e Quixeré, no Apodi cearense.

A chegada do agronegócio veio [à comunidade do Tomé] com muito subsídio estatal, ou seja, infraestrutura hídrica bancada pelo Estado, pelo governo federal, benefícios tarifários da água e na energia, isenção fiscal dos agrotóxicos. Vamos lembrar que veneno não paga imposto nesse país. Foi o que a gente chama de “contrarreforma agrária”. Obviamente isso gera concentração de terra, concentração de água e chega junto também a chuva de veneno, que é a pulverização aérea de agrotóxicos e em razão disso, as comunidades passam a sofrer esse processo e surge uma liderança, uma liderança social camponesa, que é o Zé Maria, Zé Maria da comunidade do Tomé.

Já no final é dos anos 1990 e início dos anos 2000 começam as movimentações contra a chuva de veneno e contra esse modelo, esse pacote tecnológico do agronegócio, que é um pacote social também, né? Porque ele concentra terra, água e benefícios do poder público. Esse agronegócio não vive sem o subsídio do poder público.

Em 2007, 2008 Zé Maria passa a liderar grandes movimentações de denúncia do processo de chuva de veneno e dos malefícios que isso vem causando: a morte de pequenos animais, um rastro de veneno que vai contaminando a vida das pessoas, os poços artesianos… as pessoas passam a ter dermatites, problemas neurológicos, já começam a se registrar os aumentos de câncer e de puberdade precoce, muito associado ao agrotóxico. O Zé Maria passa a fazer o que a gente chama de “vigilância popular em saúde”.

Ele começa a denunciar: “olha, esse modelo está gerando malefício, está gerando prejuízo”. As mulheres, por exemplo, quando o avião passava, tinham que tirar a roupa do varal, porque a roupa ia ficar impregnada de veneno, tamanha era a proximidade da calda tóxica e a deriva da calda tóxica do quintal das pessoas.

Em 2009, ele consegue aprovar — ele não era vereador, mas conseguiu fazer um processo de mobilização importante — uma lei municipal na Câmara Municipal de Limoeiro do Norte proibindo a pulverização aérea de agrotóxicos. Obviamente isso revoltou o agronegócio. É bom lembrar que o agronegócio não é pop, nem é moderno. Quando ele quer ser violento ele sabe ser violento.

Em 2010, às 15h do dia 21 de abril, ele foi assassinado em uma emboscada com 20 tiros e todo o processo que se arrastou a partir de então, a investigação policial, que foi muito bem feita, o trabalho do Ministério Público, o trabalho do judiciário, todos em uníssono dizem: “Zé Maria foi morto. Ele foi assassinado em uma emboscada”, portanto, um crime político, um crime de pistolagem em razão do movimento que ele fazia contra a pulverização aérea.

Como foi o processo até a realização desse júri?

Primeiro, a investigação foi difícil. É um crime de execução. Ele foi vítima de uma emboscada. Um grande número de tiros, um único executor. A viúva do executor [falecido mais tarde em 2010] disse que ele agia sozinho, mas depois, graças a investigação policial muito bem feita foram encontrados três intermediários que fizeram a contratação deste executor e dois mandantes. A investigação conseguiu chegar, inclusive, a toda essa rede, muito em razão da quebra de sigilo telefônico, das chamadas telefônicas entre eles.

Zé Maria foi assassinado com 25 tiros de calibre ponto 40, naquele momento era um calibre de uso restrito aqui no Brasil. Foram feitas mais de 40 inquirições, quebra de sigilo telefônico, perícia com micro comparação balística, ou seja, o trabalho policial foi bem feito. A defesa pediu para desaforar, que é quando você pede para retirar o júri de um foro, de um lugar para colocar em outro foro. Então foi desaforado em 2023 para [a cidade de] Russas e depois, em Russas, o magistrado entendeu que também não tinha condições de ofertar segurança ao júri e foi desaforado para a comarca de Fortaleza.

Eu tenho acompanhado desde o começo. No dia seguinte ao assassinato eu estive em Limoeiro do Norte. Houve uma grande comoção. Quero aqui fazer dois destaques: o primeiro destaque é da família. A viúva, suas duas filhas e seu filho, sofreram um abalo muito grande, mas possuem uma firmeza, uma altivez, uma dignidade gigantescas. E também a atuação do Movimento 21 de abril, o M21, um movimento que reúne movimentos camponeses, o MST, a Cáritas, pesquisadores, todos eles.

Eu entrei aqui na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará em 2015. Em fevereiro de 2015 eu dei entrada no Projeto de Lei para proibir a pulverização aérea de agrotóxicos em homenagem ao Zé Maria do Tomé. Essa Lei foi aprovada após quatro longos anos difíceis de tramitação e leva o seu nome.

Por que o júri demorou tanto?

Não era para ter demorado tanto. A violência política no campo é demorada porque ela envolve gente poderosa. A gente está falando de um grande empresário do agronegócio, que tinha ligações políticas muito poderosas à época, portanto, e ele e o seu braço direito foram saindo do processo no Tribunal de Justiça, inclusive. Para nós isso é vergonhoso, porque quem vai sentar no banco dos réus é o elo mais fraco dessa cadeia, mas nós queremos ir atrás do elo mais forte, porque obviamente não dá para entender que isso possa ser naturalizada entre nós.

Se houve um crime a mando teve um executor, teve um contratante e teve um mandante. Como é que a justiça vai, portanto, agora sentenciar, possivelmente o intermediário, sem o mandante do intermediário? Se a gente reconhece que houve um intermediário, há de se reconhecer que alguém o contratou para que ele chegasse o executor.

E quais são as expectativas para esse júri?

O Brasil inteiro está olhando isso. A ouvidora nacional de assuntos agrários, a desembargadora Cláudia Dadico estará presente, o Ministério da Justiça, o Ministério dos Direitos Humanos, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, as organizações nacionais da Via Campesina, uma grande movimentação. Agora, a grande questão é a justiça acontecer. Essa família está com uma ferida aberta. Eu ouço muito a Marcinha [filha de Zé Maria], que é uma pessoa de uma dignidade, de uma fortaleza imensa, dizer: “olha, vocês dizem ‘Zé Maria presente’, mas meu pai não está presente. Meu pai morreu assassinado”. O filho do Zé Maria tinha 4 anos quando perdeu o pai, e isso certamente causou um dano pessoal irreparável. Nenhuma sentença penal condenatória porventura vai reparar isso.

Da última vez que estive com a família, nós estivemos, inclusive, na frente de um desembargador pedindo a celeridade no julgamento do desaforamento em razão da semana do júri, e lá a família disse: “Olha, a gente quer que o julgamento aconteça, seja qual for o resultado. Não dá para essa ferida ficar 14 anos aberta”.

Qual resultado esperamos do júri, então?

Espera-se justiça para o Zé Maria e espera-se que o mandante seja revelado e que, obviamente, seja também responsabilizado. Mas mais do que isso, conforme aprendi com o Movimento de Memória, Verdade e Justiça: ‘para que nunca se esqueça para que nunca mais aconteça’. O M21 é também muito responsável por guardar essa imensa memória desse fato trágico que marcou o Ceará e também o Brasil. O Brasil inteiro vai estar olhando para cá. Vem representações do Brasil inteiro para acompanhar esse júri.

O Brasil e o Ceará já foram terra de muita pistolagem. Vamos lembrar que já houve muito pistoleiro no Brasil e no Ceará e que muitas vezes, os donos da terra contratavam exércitos particulares, executores particulares e ficavam por isso mesmo. É necessário dizer que esse tempo acabou e que os movimentos populares do campo, auto-organizados reclamam paz no campo, e a paz é fruto da justiça. O que causou a morte de Zé Maria foi a arrogância do poder de dinheiro, foi a arrogância do poder do agronegócio que acha que pode tudo, inclusive, contratar pistoleiro para matar um camponês que estava lutando contra a pulverização aérea.

Essa família nunca quis vingança, ela quer justiça. Justiça é diferente de vingança, justiça é o direito à palavra, o direito a ter resposta. O que essa viúva, o que os seus três filhos querem, o que a sociedade quer, o que o movimento social camponês quer, o que o M21 quer não é vingança. A vingança não é da nossa gramática, a nossa gramática é a gramática da justiça e nós queremos que a justiça seja feita para que, obviamente, os mandantes e intermediários paguem na medida das suas responsabilidades, mas também para que nunca mais aconteça.

 

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