Por Gabriela Amorim — Brasil de Fato
Neste abril indígena, uma área ocupada há séculos pelo povo Pataxó pode ir a leilão. A venda pode ser promovida pela Justiça Federal para pagar multas ambientais de um empresário baiano. A longa e complexa história é mais um capítulo na disputa por terra e território no extremo sul da Bahia ainda vivenciada pelos povos indígenas no local dos primeiros contatos com os portugueses. Aliás, neste capítulo, o personagem acusado de grilar terras indígenas também é um cônsul honorário de Portugal no Brasil.
De acordo com documentos da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), há registros históricos de ocupação do povo Pataxó no território da Lagoa Doce pelo menos desde o início do século 19. Há algumas décadas, no entanto, o empresário e cônsul honorário Moacyr Costa Pereira de Andrade entrou em disputa com o povo Pataxó pelo território, afirmando que esta área faz parte da Fazenda Itaquena, de sua propriedade.
Desde o final de 2023, a fazenda está indicada pela Justiça Federal para ser leiloada no âmbito de um processo de execução de multas ambientais contra Andrade. As multas devidas ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) somam cerca de R$ 36 milhões. A fazenda foi avaliada, em 2020, em R$ 82,8 milhões.
Multas ambientais e leilão
Kâhu Pataxó, presidente da Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia (Finpat), afirma que o povo Pataxó já vem há meses questionando a validade desse leilão na Justiça. “Essa área é de uma riqueza ambiental gigante! A gente não compreende como que, para pagar por um crime ambiental, se comete outro crime ambiental e ainda um crime encontra um povo”, afirma.
Ele explica que o povo Pataxó já notificou a Justiça Federal de que existe uma comunidade indígena que ocupa tradicionalmente o território. Também solicitaram a Funai que dê prosseguimento ao processo de demarcação, bem como ingresse como parte no processo contra o empresário Moacyr Andrade, uma vez que é responsabilidade do órgão defender os interesses dos povos indígenas.
O coordenador da Funai na região sul da Bahia, Aruã Pataxó, informou que desde o ano passado o escritório vem acompanhando o caso, tendo realizado duas visitas técnicas ao local. “E ainda essa semana uma equipe nossa também vai no local para poder fazer a qualificação da área, pegar todas as informações e também fazer a informação técnica e enviar para a presidência da Funai e para a Procuradoria Especializada para fazer a defesa judicial”, acrescenta.
O coordenador da Funai na região disse ainda que há, inclusive, na Justiça, um pedido de reintegração de posse do território da Lagoa Doce feito pelo empresário Moacyr Andrade. “É uma situação bastante complexa, com diversos interesses. E as comunidades indígenas, em todo esse processo, não foram ouvidas”, lamenta.
A comunidade Pataxó aponta ainda para a ausência do Ministério Público Federal (MPF) atuando no processo na Justiça Federal, uma vez que tal órgão tem como uma de suas funções a defesa dos direitos coletivos dos povos indígenas. Procurado pelo Brasil de Fato Bahia, o MPF informou que recebeu, nesta semana, uma representação sobre o assunto protocolada pelo gabinete da deputada federal Célia Xakriabá (Psol).
“O documento já havia sido encaminhado com urgência para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1). No âmbito do MPF, será feita a distribuição e, em seguida, um(a) procurador(a) da República fará a análise preliminar das informações relatadas e definirá os próximos passos, o que pode significar a instauração de um inquérito, o arquivamento do caso ou outras medidas cabíveis”, informou por meio de sua assessoria de comunicação.
Justiça: processo de execução
Diante da ausência da atuação dos órgãos federais, uma das famílias Pataxó que mora no território Lagoa Doce constituiu um advogado para defender os interesses indígenas no processo. O advogado Adam Cohen Poleto contesta a decisão da Justiça Federal em primeira e segunda instância em manter o leilão mesmo após receber a contestação da comunidade indígena.
“O juiz [Pablo Baldivieso, da Subseção Judiciária em Eunápolis] não poderia permitir o leilão de uma área que tem uma ação declaratória de posse em curso na mesma Vara em que ele é presidente do processo de execução”, acredita Poleto. Para ele, isso demonstra um risco de parcialidade do magistrado.
Ele explica que ainda não há data marcada pela Justiça para o próximo leilão, e antes que isso ocorra, deve recorrer da decisão da primeira instância em manter a venda. Em uma tentativa de interromper o processo no TRF1, o desembargador responsável pelo julgamento afirma em sentença que o eventual arrematante da área vai ter que “suportar a herança do problema possessório da terra”.
“Ou seja, quem arrematar teria que ingressar com uma ação contra os indígenas. Então, a insegurança jurídica colhida nessa decisão do próprio TRF é muito grande. Não estamos acreditando que isso vá permanecer”, afirma o advogado.
Território indígena
O território Lagoa Doce tem aproximadamente 200 hectares e está localizado entre a Barra do Rio Saruê e a Barra do Rio dos Frades, próximo ao povoado Itaquena, no município de Porto Seguro (BA), região da chamada “Costa do Descobrimento”. Ele faz parte de um território maior que está intimamente ligado à dinâmica de vida do povo Pataxó na região de Porto Seguro.
O coordenador do Finpat, Kâhu Pataxó, conta que, ao longo da história, era comum que os Pataxó do território Barra Velha, ao sul da Lagoa Doce, fizessem deslocamentos sazonais para a sede do município de Porto Seguro, via Costa. Esse trajeto inclui paradas para descanso e alimentação em Itaquena, na comunidade da Lagoa Doce, no território Imbiriba e na Aldeia Velha.
Imbiriba é um território já demarcado, Barra Velha e Aldeia Velha estão aguardando apenas a homologação da demarcação. “Com relação ao território de Itaquena, continua num procedimento inicial. A gente já vem colocando há muito tempo a necessidade de adiantar aquela demarcação”, diz.
Há registros históricos que apontam a ocupação e presença indígena Pataxó naquele local pelo menos desde o século 19. Entre 1815 e 1817, em viagem ao Brasil, o príncipe austríaco Maximiliano de Wied-Neuwied relata em seus diários e cartas a presença Pataxó no território reivindicado pelo empresário baiano Moacyr Andrade.
Atualmente, há duas grandes famílias que moram no local, utilizado como passagem nos trajetos nômades do povo Pataxó. “As duas famílias ficaram ali responsáveis. Toda a passagem que a gente fazia, era naquela localidade onde abastecia água, se alimentava, dormia e seguia a viagem. Então era um local de referência nosso”, acrescenta Kâhu.
Ainda de acordo com o coordenador do Finpat, é preciso entender que os usos dos territórios pelo povo Pataxó estão além da moradia e produção de alimentos. E mesmo após tantos séculos de contato com os não indígenas, nem todo o povo Pataxó perdeu o modelo nômade de ocupação do território.
“Para poder se entender, inclusive, o que é território pra gente, não é somente a localidade de vivência do povo Pataxó, mas exatamente esse local também de subsistência, de existência nossa enquanto povo”, acrescenta.
De acordo com a família Braz, uma das que permanece morando na comunidade Lagoa Doce, todos as pessoas que ali habitavam foram expulsas em 2007, após um acordo ser firmado entre o ICMBio e o empresário Moacyr Andrade para a criação do Parque de Refúgio da Vida Silvestre. As famílias afirmam que suas casas foram derrubadas, e os vestígios queimados por funcionários do ICMBio à época.
Ao Brasil de Fato Bahia, o ICMBio afirmou que “a unidade de conservação de proteção integral foi estabelecida em terras privadas, após um processo formal de consulta pública envolvendo todas as comunidades afetadas, inclusive os povos originários locais”. O processo de criação da unidade pode ser consultado aqui.
Quem é Moacyr Andrade
Nascido em Salvador em 1939, filho de Abelardo Moacyr Pereira de Andrade e Guiomar Costa de Andrade, Moacyr Andrade estudou em algumas das melhores escolas da capital, cursou a faculdade de Economia da Universidade Católica de Salvador (UCSAL), e concluiu um mestrado também em Economia, em 1978, pela Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC–RJ).
Diretor da empresa Agro Pastoril Itaquena, foi condecorado com a comenda Dois de Julho da Assembleia Legislativa da Bahia em 2013. Ele é conhecido na região por ser cônsul honorário de Portugal, cargo não remunerado e que não pertence à carreira diplomática.
Outros títulos acumulados por Moacyr Andrade são o de membro da Sociedade Amigos da Força Aérea (Soafab) e da Sociedade Amigos da Marinha (Soamar), sócio-fundador do Movimento de Defesa do Patrimônio Natural de Porto Seguro e da Fundação Ecológica Acqua Vitae. Além de ter recebido a medalha de Amigo da Polícia Militar, diploma de Amigo da Base Aérea de Salvador e ser membro honorário da Força Aérea Brasileira.
O nome do empresário está envolvido em várias denúncias na Justiça sobre grilagem de terras na região de Porto Seguro, bem como em episódios de violência contra comunidades indígenas da região. Um dos mais recentes, acontecido em 29 de dezembro de 2023, numa outra área indígena também no município de Porto Seguro.
Entramos em contato com os advogados que representam o empresário no processo na Justiça, mas até o fechamento dessa matéria não havíamos obtido resposta. O espaço segue aberto para a manifestação de Moacyr Costa Pereira de Andrade.
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