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Lindener Pareto

Professor e Historiador. Mestre e Doutor pela USP. Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). Apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação de História, Cultura e Arte nos canais do ICL.

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Laura de Mello e Souza: uma vida para a História

Estudiosa das dinâmicas globais da formação da modernidade, Laura é uma intérprete do Brasil e uma pensadora luminosa da História. Sorte a minha de ter sido seu aluno e ouvinte em dois momentos fundamentais da minha vida
26/05/2024 | 05h00

Nos idos de 2002, quando ainda nada sabia das dores e das delícias que a vida pode proporcionar, estava eu lá, nos corredores do Departamento de História da USP.

Foi um ano particularmente quente, talvez prenunciando a catástrofe climática que hoje ronda o Brasil e o mundo como espectro de uma morte anunciada há décadas. Foi também um ano triunfal para os estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a FFLCH (fefeleche).

Numa greve que durou de abril até agosto, mais de 108 dias, os estudantes conseguimos garantir a contratação de centenas de novos docentes, uma vez que as salas de aula estavam superlotadas e assistíamos aulas no corredor.

A greve foi uma das maiores da história do movimento estudantil da USP e contou com aulas abertas e impressionantes de nomes como Nicolau Sevcenko, Antonio Candido e Marilena Chaui, reivindicando as novas vagas junto aos estudantes e negociando com a então reitoria.

Foi também por lá que, cursando a disciplina de História do Brasil Colonial, me deparei com os primeiros textos de interpretação do Brasil, que iam de Caio Prado Jr. à Sérgio Buarque de Holanda.

Para o trabalho final da disciplina do professor István Jancsó, um desses narradores inesquecíveis, escolhi fazer a análise do clero mineiro do século 18. Como referência indicada pelo professor, o livro “Desclassificados do Ouro”, de Laura de Mello e Souza.

Quando me deparei com a corrupção e devassidão de membros do clero nas Minas Gerais do auge da escravidão e da mineração, fiquei absolutamente estarrecido.

Numa conversa de orientação dos trabalhos na sala do professor István, fui alertado: “Lindenéeer, você está sendo anacrôoonico!” Disse o mestre no tom que lhe era característico.

Rindo e fumando seu cigarro numa sala com milhares de livros e papeis amarelados, István tentava me convencer que burlar as regras e dogmas da Igreja não era algo incomum entre padres, bispos e até mesmo papas. Foi assim que descobri que muitas das regras do mundo foram feitas para não serem seguidas.

Foi assim também que mergulhei na mística de Minas Gerais e no fascínio pela invenção da sociedade colonial. E foi assim também que li o primeiro livro da historiadora Laura de Mello e Souza.

Desigualdade, desejo, traição, opressão e corrupção forjados pela escravidão e pelo oportunismo das elites, criava uma camada média de sujeitos livres que sobreviviam nas frestas e das frestas do sistema.

Estudiosa do período colonial e pioneira nas interpretações e reinterpretações das tramas e ritos da sociedade colonial e sua contradições, Laura de Mello e Souza é hoje uma das mais celebradas historiadoras do Brasil, seja pelos seus pares nacionais, ou pelos pares das principais universidades do mundo, tendo sido indicada neste ano de 2024 — pelo Comitê Internacional de Ciências Históricas — para ganhar o Prêmio Internacional de História pelo conjunto de sua obra, traduzida para o inglês, francês e espanhol.

Da primeira vez que vi Laura, foi quando cursei sua disciplina de História Moderna II. Já ouvíamos — os estudantes – as histórias sobre a mística cultural que envolvia a família Mello e Souza.

Laura é filha de Antonio Candido — um dos maiores sociólogos e críticos literários do Brasil — e de Gilda de Mello e Souza — filósofa e professora de Estética do Departamento de Filosofia da USP — grande estudiosa da obra de Mário de Andrade e pioneira dos estudos sobre moda, Gilda é cada vez mais reconhecida e finalmente colocada entre as grandes intelectuais do século 20.

Confesso que quando assistia às aulas de História Moderna II e ouvia as narrativas de Laura sobre as grandes características da Revolução Francesa, eu não tinha a menor ideia da grandeza intelectual de seus pais, mas podia perceber diante da sala de aula um acontecimento ímpar: erudição, inteligência, elegância e paixão diante do conhecimento histórico.

Lembro que nessa disciplina aprendi duas coisas luminosas: a Revolução Francesa só pode ser compreendida diante do Terror Jacobino. Robespierre não era um desvio, mas a própria essência revolucionária, com todas as suas contradições. Aprendi também que inteligência, seriedade e paixão podem ser também seguidas de grande elegância e beleza, tudo ali na professora diante de nós.

A mística era tão contundente entre os alunos e alunas, que alguma alma muito bem humorada, salvo engano o glorioso PH, chegou a montar uma matriz curricular alternativa, com disciplinas um tanto engraçadinhas, do tipo: “História das Curiosidades”, com István Jancsó.

Em várias delas, a docente responsável era a professora “A definir de Mello e Souza”, brincando com a contundente presença da família na FFLCH e no próprio Departamento de História, já que em 2001 a historiadora Marina de Mello e Souza, irmã mais nova de Laura, se juntava ao corpo docente do Departamento para ministrar a essencial disciplina de História da África.

Após décadas de dedicação à Universidade de São Paulo, Laura se aposentou em 2014. Foi então escolhida para assumir a Cátedra de História do Brasil na Universidade de Paris, a Sorbonne. Entre 2014 e 2022, morou, lecionou e pesquisou em Paris.

Lembro que em 2022, já no meu segundo ano de “Provocação Histórica”, tive a oportunidade de visitar a cidade. A elegante e glamourosa capital francesa é também a Paris da classe trabalhadora do século 19, da Comuna de Paris (1871), da Resistência Francesa contra os Nazistas — da qual fazia parte o historiador Marc Bloch — e  também a Paris dos sonhos de Liberdade do Maio 1968.

Ora, uma vez na cidade, procurei entrevistar brasileiras que ali estavam àquela altura. Uma delas, a filósofa e escritora Márcia Tiburi, que me recebeu generosamente no “Jardim de Luxemburgo”, numa entrevista que improvisei com meu velho computador, um microfone torto e um link do streamyard.

Márcia, “arianja” querida, teve muita paciência e generosidade diante da minha precariedade. Acho que pude retribuir depois com mais duas belas prosas com ela, já nos estúdios do ICL em São Paulo.

Contudo, assim que voltei ao Brasil, um amigo historiador me disse: “Lindt, rapaz, você vacilou! Esteve em Paris e não entrevistou a Laura de Mello e Souza?! Ela teria recebido você com elegância e generosidade na casa dela…”

No que respondi, “errei rude mesmo…” No entanto, naquele momento, não tinha a menor condição de fazer uma entrevista com Laura. Primeiro porque achei que não teria acesso a ela, me parecia ainda — talvez por conta da mística cultural que alimentei — distante demais do historiador-trabalhador que sempre fui.

Segundo porque não tinha equipamento algum, que pudesse dar à ocasião a qualidade audiovisual que a professora catedrática merecia. Como não tenho compromisso com o erro, procurei logo sanar o problema.

Foi então que descobri que, depois de passar um tempo em São Paulo, Laura estava indo para uma temporada de pesquisa em Lisboa. Teria eu errado rude mais uma vez? Não…mas fui salvo pelo “25 de Abril.”

A historiadora Laura de Mello e Souza recebe o “Provocação História” em sua casa em Lisboa. Abril de 2024.

Ao desembarcar em Lisboa para cobrir os 50 anos da Revolução dos Cravos, logo escrevi para Marina de Mello e Souza, que gentilmente me passou o contato da irmã.

Ao receber minha mensagem, Laura não hesitou. “Venha aqui em casa”, disse ela. E foi assim que fui, mineira e elegantemente, recebido numa das travessas de Lisboa pela laureada historiadora.

Mas desta feita levei equipe e toda a indumentária audiovisual necessária para a prosa. No segundo andar do antigo prédio lisboeta, Laura me recebeu com seu tom grave e elegante de sempre. Estendeu a mão, me convidou a entrar.

Após acomodar a equipe na sala, nos ofereceu e serviu um chá de “roiboos” delicioso, de cor avermelhada e do qual eu nunca tinha ouvido falar, mas que bebi e ainda repeti.  Cenário montado, eu numa cadeira e Laura no sofá. Começamos a prosa.

Evitarei narrar agora todos os spoilers da entrtevista que vocês podem acompanhar no “Provocação Histórica” exibido na última quarta-feira.

Porém, deixo aqui registrado alguns momentos notáveis. Entre um intervalo e outro na conversa, falamos dos interstícios não publicados da vida. Das saudades que sente dos pais, dos lutos, das dores, dos amores, das dificuldades geracionais.

Da frenética aceleração do tempo e da tecnologia, que tentávamos ali compreender a partir da comparação com períodos históricos anteriores. Entre um assunto e outro e sempre disposta a falar sobre todos os assuntos — dos signos, do cinema e do feminismo — a narradora brilhante de “Desclassificados do Ouro”  e de “O diabo e a terra de Santa Cruz”, foi tecendo uma prosa esplendorosa.

Leitora erudita desde a mais tenra infância, mostra indignação diante do filme “Napoleão”, de Ridley Scott, que não apenas distorce a Batalha de Austerlitz – tão bem narrada no clássico “Guerra e Paz” de Tolstói (que Laura leu cinco vezes!), como também menospreza o papel de Josefina, companheira e articuladora política essencial na trajetória de Napoleão.

No fluxo da prosa, quando perguntei de Dona Gilda, sua mãe, seus olhos marejaram…”me emociono muito quando falo de mamãe, ela era uma mulher luminosa…”.

Nesse instante, um problema técnico interrompeu a gravação e cortou o afeto derramado ali, numa prosa intimista, numa homenagem à grande mulher que forjou outras três grandes mulheres.

Num outro momento, interrompemos a gravação por conta de um mosquitinho que voava solto pela sala, e roubava a cena. Ficamos ali, alguns minutos de pé, e Laura tentando pegá-lo com as mãos…rimos.

Quando falou de Antonio Candido, seu pai, que pude ver e ouvir de perto lá nos idos de 2002, Laura fez questão de dizer que Antonio era um sujeito muito engraçado, excelente pai de criança, muito bem humorado e “palhaço”. Disse ainda que Antonio perdeu parte de sua alegria com o Golpe Militar de 1964.

Entre outras cousas e causos, me contou — nos bastidores — lembranças engraçadíssimas da infância.

Certa feita, brincando na casa de Sérgio Buarque de Holanda (pai do Chico Buarque), um dos filhos de Sérgio ficava dizendo que a menina Laura tomava gasolina. O garoto ficava repetindo isso sem parar. “Laura toma gasolina, Laura toma gasolina.” A pequena Laura uma hora se irritou e recorreu ao pai do garoto. “Sérgio, esse menino fica dizendo que eu tomo gasolina! Eu não tomo!” No que Sérgio Buarque de Holanda replicou: “Você toma sim! Eu te vi ali debaixo da escada tomando gasolina!”

Sérgio era assim, disse Laura. Um tanto amalucado, irreverente, talvez o último dos modernistas em suas vanguardas rebeldes, irreverentes e criativas. Laura diz que seu livro preferido de Sérgio é “Visão do Paraíso”, obra-prima. Um assombro. Certamente sua maior influência intelectual e historiográfica. Além do orientador de longa data  e historiador formador de quase todos nós, Fernando Novais.

Laura reconhece seus privilégios, bem formada, inteligente, erudita e profundamente dedicada, trilhou o caminho dos pais e foi além, internacionalizando a produção acadêmica brasileira, provando ao quadradinho mundo colonialista ocidental que a universidade pública brasileira é uma potência criativa descomunal.

Mas ela não joga fora o bebê junto com a água suja da bacia não. A língua e a cultura política portuguesa determinaram profundamente a formação do Brasil e não há caminho possível a não ser compreender Brasil-Europa-África num único combo contraditório. Pleno de potências e violências.

Estudiosa das dinâmicas globais da formação da modernidade, Laura é uma intérprete do Brasil e uma pensadora da História. Sorte a minha de ter sido seu aluno e ouvinte em dois momentos fundamentais da minha vida. E nos dois, a mesma grande e luminosa Laura de Mello e Souza.

Laura de Mello e Souza e Lindener Pareto. Lisboa, Abril de 2024.

***Agradecemos à “Mar Revolto Produções” pela parceria. 

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