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Lindener Pareto

Professor e Historiador. Mestre e Doutor pela USP. Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). Apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação de História, Cultura e Arte nos canais do ICL.

“O povo é quem mais ordena”

A luta do "25 de Abril" de hoje é retomar os ideais socialistas, é garantir a continuidade do bem-estar social e o acesso à cultura, arte e educação
30/04/2024 | 10h45

Lisboa, 25 de Abril de 2024

A ideia era participar, numa cobertura histórico-jornalística, dos “50 anos da Revolução dos Cravos.” Pois lá estávamos. O “problema” é que os lugares e as efemérides são, além da memória, as próprias pessoas, porque as pessoas são a memória viva e portanto fazem a História. Pessoas com as quais você conversa e que te levam para o “mundo delas”.

Pois, assim que coloquei meus pés no cais de Belém, ora pá, fui arrebatado pelas camadas de tempo, memória e História que tomam conta da cidade banhada pelo tão celebrado Rio Tejo. Grande Tejo que se encontra com o “Mar Oceano” logo de cara e lança, digamos assim, Portugal e os portugueses além da Bojador, para além da dor.

Contudo, com sua posição geográfica no extremo ocidente europeu e diante da ascensão das potências do capitalismo mercantil e industrial, notadamente a Inglaterra, “o imenso Portugal e seu império colonial” se tornaram o primo pobre da Europa e do Imperialismo do século 19.

Ao longo do século 20, muitas e muitos poetas e historiadores, buscando explicar a grandeza do passado e a decadência do presente, narraram as “lágrimas salgadas” da História portuguesa, muitas vezes lamentando o que teria acontecido com a fortuna, com o destino do povo que fala, como dizia o poeta Olavo Bilac, a língua da “última flor do lácio, inculta e bela”.

O fato é que, no século 20, entre o esplendor do passado e a sepultura da Ditadura Salazarista, mais uma vez Portugal emergiu das trevas, mas agora não para dominar vastos impérios coloniais e sim para, em função do “aprendizado” cruel da descolonização dos anos 1960, aprender a duras penas que a liberdade do “25 de Abril de 1974” não começou apenas com a quartelada dos “Capitães de Abril” em Lisboa, mas com as guerras de independência de Angola, Moçambique, Cabo-Verde e Guiné Bissau.

Ora, a já “azeda e podre” Ditadura de Salazar e Marcello Caetano cai, sobretudo, porque não conseguiu derrotar aqueles “rebeldes coloniais”, que durante décadas — ou séculos — foram considerados, na perspectiva colonialista, “súditos menores” ou cidadãos de segunda classe.

Não nos iludamos, o “25 de Abril” tem várias camadas, mas uma delas é sem dúvida ter “nascido” da vontade de liberdade de angolanos, moçambicanos e cabo-verdianos.

É contra a crueldade e o massacre secular perpetrado pelo colonialismo português que se levantam os movimentos de libertação, como o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a FRELIMO, Frente de Libertação de Moçambique. Movimentos socialistas profundamente marcados pela “Guerra Fria”.

O “fantasma do comunismo” assombrava o “Ocidente” (OTAN) — liderado pelos EUA — na África, na América Latina e na Ásia. E na Europa, especificamente em Portugal, quando o povo tomou as ruas após o 25 de Abril e no dia 1 de Maio (dia das trabalhadoras e trabalhadores) colocou mais de um milhão de pessoas na ruas de Lisboa, uma explosão de utopia e ao mesmo tempo de ações práticas profundamente socialistas põem em marcha um sonho de liberdade que não era apenas de Portugal, mas do mundo.

Último grande sopro de vida das revoluções marcadas pelo socialismo no século 20, a “Revolução dos Cravos”, pelo menos durante dois anos, ensinou ao mundo que a vida pode mais, que os direitos devem ser plenos e garantidos, que a educação deve ser a base da crítica e da liberdade, que a arte, a cultura, a história e a memória são fundamentais para que continuemos gritando em uníssono: “fascismo nunca mais!”

E os portugueses o sabem. Mas sabem também que o fascismo está à espreita, que os Deputados do “Chega”, do extremista André Ventura, tem aumentado cada vez mais no Parlamento da República Portuguesa, elegendo dezenas de deputados com um discurso nacionalista e saudosista de Salazar, um discurso xenófobo, misógino e racista.

Por isso que o que se viu (vimos) nos “50 anos do 25 de Abril” foi uma celebração da classe trabalhadora, das mulheres sempre em luta, dos artistas, professores, imigrantes e professoras. Categorias e classes que sabem que o fascismo se ressignificou e está pronto, mais uma vez, para assaltar e massacrar nossos direitos, nossa vida, nosso amor, nossa luta.

Foi exatamente esse clima que encontrei em Lisboa. Recebido de braços abertos por homens e mulheres portuguesas que têm tanto em comum com o Brasil e que receberam, a partir da “Revolução dos Cravos” em 1974, uma série de exilados políticos da Ditadura Militar brasileira (1964–1985).

Para além dos laços inextricáveis que nos unem na língua de Camões, Portugal e Brasil se aproximam também por terem tido, no século 20, inúmeras lutas pelo Estado Democrático de Direito. Por terem passado boa parte do século aniquilados pelas ditaduras.

E há ainda um laço que nos interessa de perto: Portugal e Brasil (Colonial e Independente) foram os dois países que mais traficaram africanos ao longo da História. Entre 1550 e 1850, portugueses e “brasileiros” traficaram e escravizaram quase 5 milhões de africanos.

A conta e a reparação não devem vir apenas de Portugal, mas numa conta conjunta que une Portugal, Brasil, Inglaterra, França, Espanha, EUA e Holanda, pois todos eles lucraram e inventaram a modernidade capitalista traficando seres humanos.

E os portugueses socialistas e trabalhadores aqui de Lisboa também sabem disso. As sociedades não são monolíticas, são elas mesmas divididas e hierarquizadas em classes e em privilégios implacáveis, seja no Brasil, na França, em Angola ou Portugal.

Por isso e por tudo mais, descer a avenida da Liberdade teve um sabor absolutamente especial. A luta do “25 de Abril” de hoje é retomar os ideais socialistas, é garantir a continuidade do bem-estar social e o acesso à cultura, arte e educação. É garantir o trabalho digno e os documentos dos imigrantes também.

É, ao descer a Avenida, ver bandeiras da Palestina, cartazes contra os genocidas, bandeiras da diversidade sexual e de gênero, dizeres como esse: “a liberdade é uma maluca que sabe quanto vale um beijo”, lembrando que em Portugal, até 1974, você poderia ser preso ao beijar alguém em público.

Estar em Lisboa e ser acolhido por socialistas de alma e atuação foi dessas coisas da vida que fazem a gente se reinventar, na dor, no luto, na luta. Repensar Brasil, Portugal, Angola e Moçambique desde o controvertido Tejo (ao mesmo tempo colonial e anti-colonial), foi uma lição de liberdade.

Só quem nos viu (ou leu) poderá sentir o calor da acolhida, o gosto bom da poesia e do vinho doce e elegante da trabalhadora alentejana, da poesia do educador de longa data, que viveu dias luminosos entre abril e maio de 1974 e ainda emana tal sonho de liberdade.

A energia da brasileira que abraçou Portugal e que luta incessantemente para (re) unir culturas tão próximas e ao mesmo tempo tão distantes. Tal foi o caminho, de lua cheia, poesia, lágrimas nos olhos, Tejo, língua portuguesa.

De fogos de artifício para receber o 25 de Abril, abraços, fraternidade. Junto com Zeca Afonso, Celeste Caeiro (que distribuiu os cravos aos soldados), junto à Rita, Luzia, Angelo, Rodrigo, David, Margarida, Diogo e Melissa, sonhamos e cantamos: o povo é quem mais ordena! E por isso a canção de Zeca Afonso, “Grândola, Vila Morena” não desgruda mais da minha cabeça e por todas as ruas me pego a cantar:

“Grândola, Vila Morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti, ó cidade

Em cada esquina, um amigo

Em cada rosto, igualdade

Grândola, Vila Morena

Terra da fraternidade”

Viva o 25 de Abril! Fascismo nunca mais!

“A Revolução dos Cravos: forças do MFA selam o acesso ao Largo do Carmo. Soldados posicionados na Rua Garrett guardam os acessos ao Largo do Carmo, ante a curiosidade dos populares. No foto, uma criança chamada Luís e o soldado Amílcar Coelho. 25 ABR. 1974.
Autor: Alfredo Cunha. Data: quinta, 25 de abril de 1974. Fundo: Alfredo Cunha. Tipo Documental: Fotografias. Cota Original: 05351.016.022. Fonte: Casa Comum: Fundação Mário Soares.

“A Revolução dos Cravos: Marcelo Caetano abandona o Quartel da GNRL”. Legenda de Adelino Gomes: “Aceite a rendição de Marcelo Caetano, os portões abrem-se e iniciam-se os preparativos para o transporte até à Pontinha do Chefe do Governo e respectivos ministros, que abandonam o local num blindado Chaimite de nome “Bula” (…). Um coro gigantesco de assobios e palavras de ordem antifascistas acompanham a saída da coluna com os prisioneiros”. 25 ABR. 1974 (cerca das 19.30h). Fonte/Autor: Alfredo CunhaData: Quinta, 25 de Abril de 1974. Fundo: Alfredo CunhaTipo Documental: Fotografias Cota Original: 05351.016.038. Casa Comum: Fundação Mário Soares.

“A Liberdade é uma maluca que sabe quanto vale um beijo”, diz cartaz da celebração dos 50 Anos do 25 de Abril. Foto: Lindener Pareto, Lisboa, abril de 2024.

Luzia Lima Rodrigues, fundadora da “Vindas Educação Internacional”, carrega bandeira do Brasil nos 50 Anos do 25 de Abril. Foto: Lindener Pareto. Lisboa, abril de 2024.

ICL e Vindas nos 50 anos do 25 de Abril. Foto: Lindener Pareto. Lisboa, abril de 2024.

*Nossos mais afetuosos agradecimentos à “Vindas Educação Internacional”, nas figuras de Luzia e David e ao Museu Aljube, na figura de sua Diretora, Rita Rato Fonseca. E ao Ângelo Battistini Marques, por nos fazer sonhar. 

**Agradecimento especial à equipe do “Mar Revolto Produções.”

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