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Por Rogério Sottili

O debate sobre a reinterpretação da Lei da Anistia vai além de um simples acerto de contas entre o presente e o passado: é uma oportunidade para que o Brasil rompa com a impunidade dos crimes praticados pelo Estado durante a ditadura militar no país, que perdura há mais de quatro décadas. Essa reinterpretação tem como objetivo garantir que os crimes cometidos por agentes do Estado contra a população nunca mais se repitam.

Países como Argentina e Chile já entenderam essa necessidade, buscando novos entendimentos de suas leis de anistia e permitindo a responsabilização de agentes estatais por crimes de lesa-humanidade cometidos durante suas ditaduras, enquanto no Brasil, ainda é preciso revisitar o passado para podermos seguir com um futuro democrático.

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi o primeiro grande marco para romper com esse silêncio. Seu relatório denunciou os crimes da ditadura e foi categórico ao afirmar que tortura, assassinato e desaparecimento forçado não podem ser anistiados. São crimes contra a humanidade, imprescritíveis.

A impunidade se reflete ainda hoje na tentativa de setores militares de se autodeclararem como poder moderador da política nacional, ignorando seu papel constitucional. O Brasil já testemunhou os riscos dessa distorção. A politização das Forças Armadas e a conivência com manifestações autoritárias, que chegaram ao ápice nos ataques contra a democracia em 8 de janeiro de 2023, são reflexos diretos dessa ausência de responsabilização.

O Supremo Tribunal Federal tem agora em suas mãos uma oportunidade histórica. O julgamento da ADPF 320, que trata da reinterpretação da Lei da Anistia, é a chave para o combate à impunidade e para reafirmar que crimes contra a humanidade não podem ser esquecidos.

O ministro Luís Roberto Barroso defende a unificação de três ações sobre o tema – de descumprimento de preceito fundamental, aberta pelo Psol em 2014, de recurso do Ministério Público Federal (MPF) contra militares acusados de homicídio qualificado e ocultação de cadáver cometidos durante a guerrilha do Araguaia, e de  recurso apresentado também pelo MPF contra os militares envolvidos no desaparecimento de Rubens Paiva -, garantindo que o Supremo se posicione de maneira definitiva sobre a questão. A recente decisão do tribunal de seguir com o julgamento reflete um compromisso institucional com a democracia e a memória.

O ministro José Antonio Dias Toffoli, relator da ADPF 320, sinalizou a importância de uma audiência pública sobre o tema na reunião que aconteceu em Brasília há mais de um ano com representantes do Instituto Vladimir Herzog e da Comissão Arns. O IVH, na condição de amicus curiae, protocolou um pedido para realização dessa audiência o mais rápido possível, com  um amplo debate sobre a necessidade da reinterpretação da Lei da Anistia.

Revisitar essa lei pode, paradoxalmente, representar uma oportunidade de fortalecimento para as próprias Forças Armadas, abrindo caminho para uma identidade institucional mais alinhada com os valores democráticos e com seu compromisso com a Constituição. Deixar para trás o passado autoritário torna possível um papel importante na defesa da soberania nacional, proteção das fronteiras, combate ao narcotráfico e à segurança nacional.

A história nos mostra que apenas sociedades que encaram seu passado com coragem são capazes de construir um futuro verdadeiramente democrático. O Brasil tem agora essa chance, e perdê-la significa chancelar novos ataques como o de “8 de janeiro”, representa um aprofundamento da cultura de violência em nosso país.

Cabe agora ao Supremo Tribunal Federal e à sociedade brasileira decidirem se continuarão no caminho da impunidade ou se, finalmente, abrirão as portas para a justiça e a verdade. Portanto, cobrar a reinterpretação e o cumprimento da Lei da Anistia não se trata de um revanchismo, mas sim de uma reparação histórica, de superação, com um olhar para o futuro.

*Rogério Sottili, diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog

 

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