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Juliana Dal Piva

Formada pela UFSC com mestrado no CPDOC da FGV-Rio. Foi repórter especial do jornal O Globo e colunista do portal UOL. É apresentadora do podcast "A vida secreta do Jair" e autora do livro "O negócio do Jair: a história proibida do clã Bolsonaro", da editora Zahar, finalista do prêmio Jabuti de 2023.

Lira domina emendas secretas na Saúde e beneficia parentes em Alagoas

Pai e primos do presidente da Câmara estão entre os prefeitos privilegiados com recursos sem transparência
28/06/2024 | 10h30

Por Igor Mello

Às vésperas das eleições municipais, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), destinou centenas de milhões de reais em emendas secretas para turbinar o caixa de prefeitos aliados em Alagoas, mostra cruzamento de dados exclusivo feito pela coluna. Entre os maiores beneficiados estão o pai e dois primos de Lira.

Até esta quarta-feira (25), Alagoas já havia recebido quase R$ 450 milhões em verbas de emendas de comissão, mostram dados disponibilizados pelo Fundo Nacional de Saúde (FNS). O valor coloca o estado no topo do ranking de repasses por habitante. Os municípios alagoanos receberam R$ 143,65 por habitante — quase cinco vezes a média do restante do país.

As emendas de comissão absorveram grande parte dos recursos destinados ao orçamento secreto do governo Bolsonaro quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu proibi-lo, em dezembro de 2022. Na prática, representam hoje uma continuidade do esquema considerado inconstitucional pelo Supremo, já que não há nenhuma transparência sobre os autores das indicações e sobre os critérios utilizados no Congresso para a divisão desse bolo — que em 2024 chegou a R$ 15,2 bilhões.

O pacote de bondades do presidente da Câmara ocorre em um momento de disputa aberta pela hegemonia da política alagoana. Empoderado pelo protagonismo em Brasília, ele tenta tomar o controle do estado do desafeto Renan Calheiros (MDB-AL), cujo grupo político governa Alagoas desde 2015. Lira articula uma candidatura ao Senado em 2026, em uma eleição onde deve enfrentar Renan.

Prefeitos aliados de Lira dominam recursos

A distribuição política das verbas gera distorções como a da pequena Teotônio Vilela, cidade de 38 mil habitantes na Zona da Mata alagoana. Ainda sim, recebeu um total de R$ 15 milhões em emendas de comissão para a saúde — mais que algumas das maiores cidades do país, caso de Campinas (SP) e das capitais Recife (PE) e João Pessoa (PB).

O prefeito da cidade compartilha com Lira o partido — o PP —  e também o sangue: Peu Pereira é integrante da família da mãe do presidente da Câmara, Ivanete Pereira da Lira. Ele é um primo distante na genealogia, segundo apuração feita pelo site De Olho nos Ruralistas. Contudo, é próximo na política: o clã Pereira é um dos mais poderosos de Alagoas há gerações, controlando diversas prefeituras e ocupando cargos públicos nos três poderes.

Na pré-campanha de 2022, Peu Pereira gravou um vídeo exaltando a atuação de Lira em prol de Teotônio Vilela. Ele destaca, em especial, verbas para o custeio da saúde — justamente o destino das emendas enviadas novamente pelo presidente da Câmara em 2024.

“Aqui em Teotônio Vilela, o nosso deputado federal Arthur Lira vem mudando a nossa cidade e a vida de nossa gente. É um trabalho fantástico na área da saúde, da educação e infraestrutura”, diz o prefeito, antes de completar. “E muito importante: o custeio da saúde, que tem ajudado muito”.

Arthur Lira e seu primo Peu Pereira, prefeito de Teotônio Vilela (AL)

Arthur Lira posa com seu primo Peu Pereira, prefeito de Teotônio Vilela (AL)

Entretanto, nem sempre o parentesco de Lira com os prefeitos beneficiados é tão distante. Com 7.944 habitantes, Barra de São Miguel, cidade litorânea na região metropolitana de Maceió, foi agraciada com R$ 2,58 milhões — superando cidades muito mais populosas como Niterói–RJ (481 mil habitantes), Montes Claros–MG (414 mil habitantes) ou Anápolis–GO (398 mil habitantes).

O prefeito de Barra de São Miguel é ninguém menos que o pai de Arthur Lira, o ex-senador Benedito da Lira. Biu, como é conhecido, foi durante duas décadas um dos líderes do Centrão no Congresso, mas legou ao filho as articulações nacionais após ser atingido pela Operação Lava Jato, que o qualificou como um dos principais integrantes do chamado “quadrilhão do PP”.

Na esteira das denúncias, tentou se reeleger senador em 2018, mas terminou a disputa pelas duas vagas de Alagoas em quarto lugar. Em 2020, lançou-se na disputa pelo comando do pequeno balneário alagoano e saiu-se vencedor, prometendo irrigar Barra de São Miguel com os recursos obtidos pelo filho em Brasília.

A promessa foi cumprida: um mês depois de tomar posse, Benedito de Lira viu o filho Arthur ser eleito presidente da Câmara e, no posto, turbinar o caixa de sua prefeitura com dezenas de milhões oriundos do orçamento secreto.

Consórcio para driblar ‘burocracia’

O atual líder da família Pereira na política alagoana é Joãozinho Pereira (PP-AL), um dos principais aliados de Arthur Lira. Ele foi indicado pelo presidente da Câmara em 2021 para comandar a superintendência da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba) no estado, principal braço de distribuição dos recursos do orçamento secreto. Ele deixou o cargo em abril, para concorrer à prefeitura de Junqueiro, reduto eleitoral de Lira e de sua família.

Seu antecessor no cargo também está na lista dos beneficiados por Lira com emendas de comissão. Hoje prefeito de Limoeiro de Anadia, Marlan Ferreira (PP), conseguiu com o presidente da Câmara R$ 8 milhões. Ele comandou a Superintendência da Codevasf em Alagoas até 2020.

Ele acumula o comando do município de pouco menos de 25 mil habitantes com o posto de presidente do Conagreste — consórcio que reúne 29 municípios do interior do estado.

Arthur Lira abraça o prefeito de Limoeiro de Anadia, Marlan Ferreira (PP), também presidente do Conagreste

Arthur Lira abraça o prefeito de Limoeiro de Anadia, Marlan Ferreira (PP), também presidente do Conagreste

O cargo é chave para a atuação provinciana do presidente da Câmara. A ambição dele é que o Conagreste possa passar a receber emendas parlamentares e distribuir entre os municípios alagoanos. A manobra visa, entre outros objetivos, driblar mecanismos de controle — descritos por Arthur Lira como “burocracia”.

O principal deles é o Cauc (Cadastro Único de Convênios da União), descrito por políticos como o SPC das prefeituras –para estar em dia, os governos precisam cumprir requisitos orçamentários, fiscais, de transparência e prestar contas adequadamente sobre recursos federais já recebidos. Municípios e estados inaptos não podem receber transferências voluntárias da União.

Durante uma entrega de tratores da Codevasf em julho do ano passado, Lira manifestou essa intenção: “Quero ressaltar que o consórcio público é o caminho de serem agilizadas as obras, as ações e de conseguir atender de maneira menos burocratizada os municípios”,

Marlan Ferreira já tinha escancarado essa intenção em março de 2023, ao discursar em Brasília durante a Marcha dos Municípios.

“Atualmente os parlamentares ficam impedidos de colocar recursos devido a inadimplência dos municípios no CAUC, e é através da Codevasf ou através dos consórcios que os parlamentares podem destinar recursos aos municípios que estão nessa delicada situação. Desses recursos, quando são direcionados, de 3% a 4% ficam para a Codevasf ou para a Caixa. Estamos em busca de que essa porcentagem seja direcionada para os Consórcios, para que possamos contratar técnicos e engenheiros para elaborações de projetos e fiscalizações dessas obras e pavimentações”, disse ele.

Como funcionam as emendas de comissão

Assim como ocorria com as emendas de relator, nome formal do orçamento secreto, a distribuição das emendas de comissão não segue nenhum tipo de critério técnico, obedecendo apenas os interesses políticos dos principais caciques do Congresso. Eles são os responsáveis por determinar quais parlamentares terão acesso à divisão desse quinhão bilionário do orçamento.

Como não há nenhuma transparência sobre os verdadeiros padrinhos das indicações, não é possível atribuir a Lira a autoria de 100% dos repasses feitos para Alagoas. Contudo, fontes ouvidas pela coluna na Câmara indicam que ele é um dos caciques responsáveis pela divisão dos recursos destinados à saúde — cobiçados por serem transferidos com agilidade diretamente para o caixa das prefeituras, sem a necessidade de um convênio com o governo federal.

Nos bastidores de Brasília, diz-se que ele é o principal responsável pelo bombardeio que a ministra Nísia Trindade sofreu desde a posse no comando do Ministério da Saúde.

Ironicamente, em fevereiro, Lira assinou de próprio punho um requerimento de informações questionando a ministra sobre os critérios utilizados para a distribuição de recursos da pasta, após reportagens indicarem que ela teria beneficiado o município de Cabo Frio (RJ), onde seu filho posteriormente virou secretário de Cultura.

Desde então, Alagoas não só recebeu um volume desproporcional de recursos, como passou à frente na fila. Até o início de junho, o estado era o segundo que mais tinha recebido emendas de comissão em valores absolutos. Com a liberação de cerca de R$ 1,5 bilhão neste mês, o estado de Lira caiu para a sétima posição — mas manteve a liderança quando a comparação é feita considerando a população de cada estado.

Durante mais de uma semana, a coluna procurou o Ministério da Saúde pedindo informações sobre os critérios de distribuição e prestação de contas de emendas de comissão designadas à pasta, mas não obteve resposta. Arthur Lira também foi procurado por meio de sua assessoria, mas não respondeu as perguntas enviadas.

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