O fim do primeiro turno das eleições traz sempre uma espécie de ressaca. A “festa da democracia no Brasil, é uma celebração aguardada, mas que o anfitrião — o povo brasileiro — gasta os tubos de dinheiro, a família briga e a maioria dos convidados saem reclamando de pouca comida. A formação majoritária de câmaras dos vereadores e prefeituras altamente alinhadas com muito retrocesso, é daquelas bebidas de má qualidade servidas para economizar, mas que no final saem caras para a saúde de todos os convidados.
O gosto amargo e as dores de cabeça que a ressaca desta festança traz, são curados com alguns antiácidos. Um deles é a arte, que permite desaguar nossas frustrações, dores, amores, incertezas, belezas, feiuras, raivas, imaginações, etc. A Festa Literária de Paraty (FLIP) acontece na semana em que estamos todos e todas ainda com os ecos das eleições e a indagação que ressoa no samba: “Como será o amanhã? Responda quem puder”.
João do Rio, o homenageado, e seu mergulho na essência das ruas cariocas de uma época tão distante quanto presente em sua essência alicerçada em tudo o que de belo e trágico nos formou, chega para nos lembrar de quem somos. Um esforço para uma retomada da “alma encantadora das ruas” que nos atravessam. Um jornalista, alguém que viveu para investigar, escrever, noticiar, enfim, contar.
Serão quatro dias de mergulho no pensamento e na fabulação, na crítica e na diversão, nas realidades nacionais e fora das nossas fronteiras. Um congraçamento no entorno da Literatura, esta arte tão inquietante e incômoda, que é sempre a primeira a ir para a fogueira quando os tiranos se sentam em seus tronos de poder, mas não apenas.
Poucos momentos na história recente foram tão delicados para a arte literária em nações onde um outro tipo de despotismo mostra seus tentáculos: aquele que não parte de um poder central, mas de grupos localizados dentro dos territórios nacionais. É a extrema direita pressionando o direito do acesso à leitura e a escrita de conteúdos que não sejam os que ela considera razoáveis. Uma régua bastante limitada e excludente.
No Brasil tivemos casos recentíssimos de livros censurados por prefeituras e instituições, mas nos Estados Unidos — o país que se diz a terra da liberdade — uma onda de banimento de obras sem precedentes vem provocando a necessidade de campanhas de proteção aos livros, como se eles fossem mais letais do que as armas que nossos vizinhos do norte vendem para ajudar a aniquilar povos inteiros… mas na verdade, para eles os livros são realmente bem mais letais que as armas de fogo, pois estimulam o exercício de pensamento e estão mortos os cérebros que não se exercitam contando suas histórias e lendo as dos outros.
O jornalista Jamil Chade, em sua coluna no site UOL, trouxe o levantamento da instituição Pen America, entidade que reúne escritores e publicações norte americanas. Entre 2022 e 2023, ou seja, em um ano, foram 3.300 títulos banidos. Obras que tragam questões de gênero, conduta sexual, liberdade da mulher, questões sociais e raciais são o foco dos inquisidores medievais do século 21.
Em 2022 a autora Saidiya Hartman esteve no Brasil para a Flip daquele ano e para uma série de palestras em algumas capitais. Saidiya é especialista em Literatura, História Afro-americana, tem PhD na Universidade de Yale e leciona nas Universidades de Columbia e Berkeley. Tive a oportunidade de estar com ela em uma das mesas em que participou, em programações oficiais e também em conversas informais em encontros entre amigos. O tema surgiu com muita preocupação, mas ela me confidenciou: “O Brasil que conheci pela primeira vez nos anos 90 era totalmente outro. O que aconteceu para que a cor e qualidade do debate destas plateias mudasse tanto?”. Minha resposta para ela poderia se resumir em duas palavras: Cotas e Livros. Na tréplica, certa melancolia: “Vejo esperança aqui muito mais do que lá”.
Outro remédio contido nos livros para a ressaca das democracias que parecem agonizar lentamente: Saídas possíveis do estado de letargia. O que também pode ser traduzido como … esperança.
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