ICL Notícias

Por Jorge Alexandre Neves *

Há exatamente uma década, fui convidado a lecionar uma série de cursos sobre métodos quantitativos para alunos de pós-graduação em Ciências Sociais na UFMA, em São Luís. Eu viajava para lá e ficava uma semana hospedado em um hotel próximo a um pequeno restaurante de propriedade de uma senhora muito simpática e vigorosa, que estava sempre lá, tocando seu negócio com uma alegria contagiante. Com minhas frequentes idas ao estabelecimento, terminei tendo diversas conversas com ela, com quem aprendi muito.

Sua história de vida era a de muita gente no Brasil, tinha vindo de uma situação de pobreza extrema, mas ali estava, proprietária de um negócio viável, que lhe provia uma renda típica da “classe média tradicional”. Sua trajetória tinha muitos eventos interessantes — e outros tantos dramáticos — mas ela fez questão de marcar como símbolo do seu sucesso algo que poderia ser representado de forma material.

Eu encontrava-me sentado na parte externa do restaurante tomando uma cerveja gelada numa noite de calor, quando ela entrou, abaixou-se atrás do balcão e buscou sua bolsa. Aproximando-se de mim, tirou um cartão bancário da bolsa, mostrou-o para mim e perguntou: “sabe o que é isso, professor?”. Eu respondi que não, no que ela foi logo esclarecendo tratar-se de um cartão do BNDES. Em seguida, veio a revelação do que para ela seria a chave final do seu sucesso: “professor, isso é algo que, antes de Lula, só rico tinha na carteira!”. E completou: “só mesmo Lula, que também foi pobre e conseguiu vencer na vida, para fazer isso”.

As conversas com essa senhora nunca me saíram da cabeça. Elas me deixaram convencido de que a força do lulismo no Nordeste — que trouxe para o campo progressista um voto que um partido tradicional de esquerda não conseguiria ganhar — tinha a ver com a imagem de Lula como um retirante nordestino que, contra tudo e contra todos, tinha conseguido vencer na vida e hoje era um exemplo para os pobres do país inteiro. No fundo, é uma imagem de Lula como um grande empreendedor! Algo que, de fato, ele é, pois, entre outras coisas, conseguiu liderar a construção de um grande empreendimento, que é o próprio PT, um dos maiores partidos progressistas do mundo e o maior da história do Brasil.

Na mesma época, mais ou menos, fui convidado por um colega de departamento para pesquisar o programa CrediAmigo, do BNB. Esta pesquisa levou à publicação de um artigo científico, em 2016, e reforçou minha convicção sobre a ligação do lulismo com o empreendedorismo. O CrediAmigo só existe na área de atuação do BNB, que inclui os nove estados do Nordeste e a parte norte dos estados de MG e ES (no recente lançamento do Programa Acredita, inclusive, uma empreendedora mineira discursou agradecendo os benefícios do CrediAmigo). Obviamente, há uma forte correlação entre essa cobertura e os mapas das últimas eleições presidenciais. Todavia, essa associação pode ser totalmente espúria. Mas talvez não totalmente!

Há algumas semanas, o jornalista Otávio Guedes fez, na Globo News, uma interessante reflexão sobre o fato de candidatos de direita estarem conseguindo formular um discurso de defesa do empreendedorismo em detrimento do PT, visto que foi no segundo governo Lula que foi criado o MEI. Eu complementaria lembrando que foi no final do primeiro governo Lula que foi aprovada a legislação que criou o Simples Nacional, que também trouxe muitos benefícios para os pequenos e médios empreendedores, principalmente tributários. Da mesma forma, foi no primeiro governo Lula que o CrediAmigo ganhou tração, a partir da extraordinária capacidade de reinvenção do programa com base em um desenho institucional extremamente eficaz, que foi destrinchado meticulosamente no artigo científico que publicamos. Finalmente, não devemos esquecer, foi sob a administração de Lula que o pequeno empreendedor teve acesso a crédito do BNDES, como a dona do restaurante de São Luís fez questão de me mostrar.

Eu acredito que, mais do que antes, o terceiro governo Lula deve prestar muita atenção para as políticas voltadas ao empreendedorismo. Seus governos foram os que mais fizeram pelo empreendedor. Todavia, como li na reportagem de capa do Globo deste domingo, os analistas enxergam como um dos maiores problemas do campo progressista hoje justamente a relação com os empreendedores. É inevitável que nos perguntemos, então, a razão pela qual isso ocorre. Por que quem mais formulou e implementou iniciativas de promoção e facilitação do empreendedorismo não consegue defender suas realizações de forma clara e ampla?

Há mais de uma década está claro que a formação do que prefiro chamar de um “novo estrato médio” traria grandes desafios para o campo progressista. A reforma trabalhista — que o campo progressista nem tentou buscar reverter, mesmo que parcialmente, por saber não ter força legislativa suficiente — só aprofundou esses desafios. Ao mesmo tempo, o terceiro governo Lula precisa saber lidar com as consequências não intencionais do sucesso de algumas das políticas públicas de seus governos anteriores.

Por exemplo, como mostrou uma pesquisa do IPEA publicada há dois meses, 38% da população economicamente ativa ocupada têm qualificações superiores àquelas demandadas pelas funções laborais que exercem. A esmagadora maioria dessas pessoas faz parte do “novo estrato médio”. Embora os salários estejam aumentando e o desemprego diminuindo, a dinâmica econômica está se dando, ainda, na base do mercado de trabalho. Para esses 38% de trabalhadoras e trabalhadores, o sentimento é o de que estão subempregados, sentem o que nós sociólogos chamamos de privação relativa.

As iniciativas de reindustrialização levadas a cabo pelo terceiro governo Lula irão, certamente, ajudar a solucionar esse problema. Todavia, isso demanda alguns anos para começar a ter impactos mais relevantes. No curto prazo, é preciso que o Governo Federal busque em políticas de impulsionamento do empreendedorismo — se inspirando, inclusive, em exemplos exitosos de iniciativas do campo progressista de países como Uruguai e Bolívia — caminhos para a realização profissional dessa mão-de-obra que se sente frustrada. Boa parte já está na condição de empreendedores, mas precisam de ajuda do Estado para dar saltos e, inclusive, gerar novos empregos para terceiros.

Nós conhecemos o caminho das pedras, bem como já há um ministério constituído para propor e implementar novas políticas públicas na área. Portanto, só está faltando mais combustível e pressão. O presidente Lula, como grande empreendedor que é, está no lugar certo, no momento certo, para tocar essa obra!

*Professor titular de Sociologia da UFMG

 

SAIBA MAIS:

Empresas e MEI têm até dia 31 para regularizar dívidas com Simples

Deixe um comentário

Mais Lidas

Assine nossa newsletter
Receba nossos informativos diretamente em seu e-mail