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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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As lutas que nunca serão tendência da estação

São Paulo não terá a Feira Preta em 2025
20/03/2025 | 05h00

A Feira Preta, evento que já se tornou tradicional por reunir centenas de empreendimentos criados e capitaneados por pessoas negras no Brasil, não acontecerá em 2025 na cidade onde surgiu: São Paulo. A maior e mais rica cidade da América Latina não terá o evento por um motivo tanto comum quanto surpreendente para uma iniciativa que faturou, apenas no passado, mais de 14 milhões de reais, gerou mais de 600 empregos temporários e movimentou 170 empresários: falta de patrocínio.

O fato não é isolado, ele é apenas um drástico exemplo que evidencia um sinal dos tempos de retrocessos e nas redes sociais pessoas comentam que incentivar iniciativas como esta “saiu de moda”. Este é um comentário que passou a ser corriqueiro após grandes grupos deixarem suas políticas de diversidade com a ascensão da extrema direita ao poder nos Estados Unidos.

Que empresas localizadas no país de Donald Trump, incentivadas por ele e seus apoiadores, queiram suprimir ações que se pareçam mesmo que de longe com ações afirmativas é esperado, visto que o grupo tem por projeto assumido a volta aos saudosos séculos em que a população branca e masculina (maioria numérica no país) estabelecia onde e como outros grupos deveriam transitar.

No Brasil, onde a população se autodeclara 54% negra, esta mesma atitude assinala um projeto nada inteligente, mas embora o capital não aceite estar por baixo e o deus mercado não conceba perder um centavo que seja, há algo que parece mais forte que a necessidade de ganhar dinheiro imediato: manter os recursos para sempre nas mesmas mãos, mesmo que isso signifique perder momentaneamente.

Todavia, se a iniciativa privada se rende à lógica excludente, não seria hora de cobrar do poder público apoio a iniciativas que geram sustento de tantas famílias e movimentam a economia?

Apesar da tentativa em reduzir a uma “moda” que emergiu no mundo durante e após a pandemia em meio aos ecos pela morte trágica e filmada de George Floyd tempos longínquos de lutas por direitos, acesso aos espaços de poder como universidades, postos de comando nas empresas e cargos nos primeiros escalões dos três poderes da união, alguns passos muito sólidos foram dados. A população que finalmente conseguiu penetrar nestes círculos apertados (e apartados) não parece disposta a retroceder, mas faz-se urgente que estas mesmas pessoas tirem do discurso a palavra “moda”.

Mesmo que em tom irônico, dizer isso reduz a luta de muitos e, principalmente, atenua a real intenção por trás do mercado que rejeita a diversidade: dominação, poder, imposição, retrocesso. Admitir passivamente como fato consumado que a briga por equilibrar o jogo social pode ser usado pelo mundo do marketing como tendência para agradar determinado público é relegar ao fracasso muita história.

Há um silêncio. Um estranho silêncio no mundo fora da virtualidade das redes. Há uma inação que de alguma maneira se relacionado com a aceitação e o aproveitamento das tendências da “moda” para coisas bem sérias, em que pese as ações de ativistas em grupos que sempre estiverem nas trincheiras mais combativas que abriram espaço para gerações inteiras.

Vida longa à Feira Preta e a todos e todas que ousam pensar e orientar seu consumo de maneira a valorizar sua forma de viver e pertencer. Direitos não são moda e que consigamos parar de tratar como moeda negociável o direito de existir.

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