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Valdemar Figueredo (Dema)

Idealizador e coordenador desde 2017 do Observatório da Cena Política Evangélica pelo Instituto Mosaico (www.institutomosaico.com.br). Pós-doutorando em sociologia pela USP. Doutor em ciência política (antigo IUPERJ, atual IESP-UERJ) e em teologia (PUC-RJ). Pastor da Igreja Batista do Leme e da Igreja Batista da Esperança, ambas na cidade do Rio de Janeiro.

Mãe atípica invisibilizada

Sobre as mães e pais atípicos invisíveis no fundão ou nos cantos das salas de aulas nas universidades
24/09/2024 | 05h01

O semestre acadêmico não seria nada fácil. Lista de chamada com 76 nomes. Duas turmas de Fisioterapia agrupadas para cursar Sociologia. A instituição queria acertar o currículo e optou pelo caminho fácil: o frescor dos novatos do segundo período junto com os veteranos do oitavo.

No palco de uma sala larga e comprida um rapaz solitário estreava como professor universitário. Fascinado e inseguro tentava justificar a sua presença. Minimamente teria que dizer que além de obrigatória a disciplina era relevante para a vida e para a carreira profissional.

Julgou contraproducente apresentar de cara os senhores Emile Durkheim, Karl Marx e Max Weber. Deu voltas históricas em torno das sociedades industriais e formação dos centros urbanos hiper populosos. O mundo do trabalho que provoca lesões e fraturas.

O curso seguia com suas nuances, curiosidades, aborrecimentos, alegrias, risos, amizades e aprendizados. Conforme ensinou o mestre Paulo Freire, a sala de aula é lugar de encontros humanos antes de descoberta de conteúdo. Professores e alunos são gente e precisam aprender a arte da convivência.

Mas nessa turma tinha uma moça intocável. Quando chegava, a aula já havia começado e saía sem que houvesse terminado.

Nenhuma intervenção, jamais elaborou uma pergunta, evitava as atividades didáticas em pequenos grupos, sequer um olhar interessado. O resultado da primeira prova não a demoveu da sua postura dispersa.

Para o professor, a curiosidade em relação a ela foi se transformando em antipatia.

A aluna de corpo presente destoava da turma interessada. O professor internalizou, magoou, foi afetado na sua vaidade de estreante. Parecia agradar geral, exceto a ela. Jurou para si mesmo que na avaliação final não teria nenhum tipo de condescendência, ainda que a moça estivesse no último período da faculdade.

Não deu outra, ela foi muito mal na primeira avaliação. Precisava conquistar na segunda prova a nota máxima para obter a aprovação direta. O docente preferiu chamar a sua doce vingança de dever do educador frente ao discente displicente. Ato exemplar que serviria para a vida. Só com o tempo ficaria claro que a sua aposta no fracasso dela tinha a ver com a vaidade dele.

Imagina, a moça destoou da turma e não deu a mínima para as cativantes aulas do mestre em início de carreira.

Penúltima segunda-feira do semestre. Em sala de aula apenas os alunos que não conseguiram a média para a aprovação em duas provas. Pelo regimento da faculdade, cabia ao professor uma revisão geral para na semana seguinte aplicar a prova final. Ainda com a vaidade aflorada, o professor sociólogo achou que tudo já estava dito, bem explicado, nada mais a acrescentar.

Arrumou as cadeiras em forma circular e esperou os alunos. Propôs que cada um falasse o porquê escolheu o curso de Fisioterapia, fizesse um balanço do término do período e por fim, compartilhassem suas perspectivas. Queria finalizar a dinâmica com a ideia de contexto social. A chave de leitura para a prova final seria aquela: a Sociologia como moldura e a Fisioterapia como imagem. Figura e fundo.

Foi surpreendido. Os alunos até então não aprovados tinham muito a ensinar. Tivesse ele calado antes, sentado antes, ouvido antes…

Ouviu uma voz que não conhecia:

Escolhi Fisioterapia porque meu filho nasceu com paralisia cerebral. Talvez consiga formar com a turma no final do ano, mas se não der, fiz o que pude. Para estar aqui à noite, minha mãe fica com ele. Às vezes tenho que correr para casa. Quanto às minhas perspectivas, quero me dedicar ao meu filho e o estimular de todas as formas.

Era a primeira vez que ouvia a voz da minha aluna dispersa. Os colegas que estavam com ela há quatro anos não sabiam que ela era uma mãe atípica.

Todos estavam envolvidos com a comissão de formatura, estágios e mercado de trabalho. Mas, entre nós, havia alguém que destoava, estava fora do clima. A aluna que eu estigmatizei como desinteressada em relação ao que eu tinha a dizer estava feliz por poder correr para casa e exercer a Fisioterapia de forma integral, por toda a vida, sem remuneração e sem jaleco com o nome próprio bordado.

No metrô, a caminho de casa, chorei um choro doído…

Não por pena dela ou do filho. Minhas lágrimas tinham a ver com vergonha da minha displicência. A menina que julguei dispersa era um ser humano integral, mãe atenta, fisioterapeuta com senso apurado do contexto social no qual atuava. Figura e fundo.

Fui reprovado na minha estreia! Isso aconteceu há mais de vinte anos.

Contudo, em cada nova experiência como professor, em todas as turmas que leciono, procuro em outros rostos a minha aluna dispersa pelos cantos das salas. Sempre acho os invisíveis. Acho que no meu olhar elas e eles reconhecem que eu sou um igual, pai atípico, e sei bem da alegria de voltar depressa para casa.

 

SAIBA MAIS:

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