Embora tenda a um desfecho positivo para os povos originários, a análise do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF) criou uma nova preocupação para o movimento indígena. Em junho, Alexandre de Moraes votou contra a tese jurídica ruralista, mas fez uma proposta que mudou os rumos do julgamento
Moraes propôs que proprietários de fazendas sobrepostas a terras indígenas tenham direito a indenização no momento da desapropriação. Em nome de uma suposta harmonia entre os direitos dos povos originários e dos fazendeiros, o ministro abriu caminho para estabelecer um precedente tão ou mais perigoso do que o próprio marco temporal.
Ao propor engordar as compensações aos fazendeiros, Moraes “requentou” uma pauta defendida por ruralistas há pelo menos 15 anos. Em nome dos latifundiários de Mato Grosso do Sul, a ministra Simone Tebet é uma antiga articuladora da proposta, que agora tem chances de se concretizar via Judiciário.
O próprio relator do marco temporal, Edson Fachin, considerou que a compensação financeira não deve ser discutida na ação do marco temporal. A Advocacia-Geral da União já avisou que a mudança geraria um “gasto incalculável” e poderia travar as demarcações. E especialistas dizem que a proposta é nitidamente inconstitucional.
“O marco temporal tende a ser declarado inconstitucional, mas me parece que está relativamente certo que a questão das indenizações também será decidida pelo Supremo. O Congresso Nacional ficou muito feliz com essa ideia [de Moraes], porque ela atende aos interesses do agronegócio”, avaliou o coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Maurício Terena.
“As indenizações propostas por Moraes rompem com o texto da Constituição. O voto dele cria uma fase nova para o processo demarcatório, que é a da indenização prévia, ou seja, antes da entrega da posse aos indígenas. A União teria que pagar indenizações antes de finalizar a demarcação, o que pode tornar o processo ainda mais moroso”, explica o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael Modesto.
Constituição diz que títulos de propriedades são nulos
No voto, Moraes lembrou de proprietários de “boa-fé” que receberam títulos de propriedade de governos municipais, estaduais e federais. Por isso, o ministro defendeu que os processos demarcatórios de terras indígenas só possam ser concluídos quando todos os fazendeiros afetados forem indenizados.
A União já indeniza não indígenas que tenham ocupado as áreas de boa fé. O cálculo é feito exclusivamente a partir do valor das chamadas benfeitorias, isto é, das construções erguidas. Isso ocorre porque a Constituição considera nulos todos os títulos particulares incidentes sobre áreas reconhecidas como indígenas. Pequenos produtores têm direito a serem reassentados pelo Incra em caso de desapropriação para demarcação.
Mas para Moraes a situação é injusta. Ele quer que os fazendeiros recebam também pelo preço da terra nua, englobando toda a propriedade rural, inclusive áreas “vazias” onde não há construções, plantações ou cultivo de gado.
A principal organização dos povos originários no país, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), reconhece haver casos de ocupação de boa fé, mas avaliou o voto de Moraes como “desastroso” e inconstitucional.
“Nós defendemos que essas indenizações sigam o rito que determina a Constituição, que são as indenizações pelas benfeitorias de boa-fé. E que essas indenizações sejam feitas desatreladas de qualquer processo demarcatório e que isso não inviabilize as demarcações”, resumiu Maurício Terena, da Apib.
Para a Apib, o ministro desconsiderou o cenário generalizado de grilagem e de ocupação criminosa de territórios indígenas pelo agronegócio, inclusive com a prática de pistolagem. O setor jurídico da Apib teme que a indenização substancial possa servir de estímulo à invasão de terras em fase de regularização, premiando os invasores e aumentando os conflitos no campo.
“A violência contra os povos indígenas é causada por uma série de fatores, incluindo o desmatamento, a mineração ilegal, a grilagem de terras e a expansão da fronteira agrícola, mas o principal motivo é a morosidade na demarcação das terras”, escreveu a Apib.
“Gasto incalculável”, diz AGU
A União alerta que o voto de Moraes pode travar as demarcações. Em uma manifestação enviada ao Supremo, a Advocacia-Geral da União (AGU) constatou que a mudança pode tornar o processo mais demorado, além de impor aos cofres federais um “gasto incalculável, em um ambiente de severas restrições orçamentárias”.
Mesmo com a criação do ministérios dos Povos Indígenas pelo governo Lula (PT), a Apib lembra que os recursos para o setor têm sido reduzidos a cada ano. O orçamento para demarcação de terras indígenas caiu 80% nos últimos dez anos: de R$ 500 milhões em 2013 para R$ 100 milhões em 2023.
“Estabelecer que a indenização ao ocupante será prévia à demarcação cria mais uma condição (que não está prevista na legislação) para o exercício de um dever estatal de demarcação, que já se encontra em mora [atraso] desde 1993, bem como gera um ônus financeiro ao Estado ainda não previsto no orçamento público”, escreveu a AGU ao STF.
Pelas regras atuais de indenização, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) estima em R$ 10 bilhões o valor necessário para concluir todos os processos de regularização de terras indígenas. Se a tese de Moraes for seguida pelo plenário do STF, o jurídico da Apib calcula que o valor será três vezes maior.
“A indenização prévia é bem inviável. Acho que um ajuste seria ter uma temporalidade de ocupação da terra. Que a indenização seja feita a partir de critérios estabelecidos a partir do período de ocupação [dos fazendeiros que estão dentro das terras solicitadas pelos indígenas]”, declarou a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara.
De Moraes a Tebet: “momento é maduro para conciliação”
Conceder indenização a fazendeiros pela terra nua não é uma proposta original de Alexandre de Moraes. Há décadas, latifundiários e seus representantes políticos tentam emplacar a compensação financeira mais robusta como solução para disputas violentas entre indígenas e não indígenas.
A proposta ganhou força em 2014, no auge do sangrento conflito entre milícias rurais e os Guarani Kaiowá, que já deixou centenas de indígenas mortos. Na época, uma das principais articuladoras da tese era a vice-governadora do Mato Grosso do Sul, Simone Tebet, atual ministra do planejamento.
Moraes e Tebet conversaram sobre o tema ainda 2017, durante sabatina no Senado pela qual passam todos os indicados ao Supremo. Após o então ministro de Temer afirmar que o direito de propriedade deveria ser visto à luz do interesse social, Tebet lembrou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de sua autoria, que obrigaria a União a indenizar fazendeiros com base no valor da terra nua, antes de destinar terras aos indígenas.
Moraes respondeu que o momento era “maduro” para a conciliação e se disse favorável a preservar o direito de propriedade. Assim como fez durante o julgamento do marco temporal, ele lembrou que alguns títulos de propriedade foram concedidos ainda por D. Pedro II aos combatentes da Guerra do Paraguai.
A PEC elaborada por Simone Tebet foi aprovada no Senado, mas está parada na Câmara há quatro anos. Após assumir o ministério do planejamento no governo Lula (PT), ela voltou a defender a indenização pela terra nua durante entrevista coletiva no Mato Grosso do Sul, um mês antes de a proposta aparecer no voto de Alexandre de Moraes.
“Se isso foi feito [indenização pela terra nua], eu acho que a gente resolve grande parte do problema. Ninguém é contra a demarcação de área indígena, mas também não podemos tirar o proprietário que tem título, que comprou, que planta e produz sem o devido direito à indenização”, disse Tebet em maio deste ano.
“O ministro Alexandre de Moraes tentou fazer uma conciliação com os interesses que estão em disputa: o dos povos indígenas e o da bancada do do agronegócio, que vê na indenização uma possibilidade deles não sair com as mãos vazias”, resumiu Maurício Terena, da Apib.
Indígenas esperam que ministros sigam voto de Zanin
No STF, o placar da votação está em 4 a 2 contra o marco temporal. Os votos favoráveis são dos dois indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL): André Mendonça e Nunes Marques. Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso foram contrários. Os votos das duas únicas mulheres no Supremo, Cármen Lúcia e Rosa Weber, devem garantir maioria contra o marco temporal.
A indenização a fazendeiros divide os ministros. Para Barroso e Fachin, o processo do marco temporal não é o âmbito adequado para se discutir o tema. Recém-indicado ao STF por Lula, Zanin acatou parcialmente a tese de Moraes. Ele defendeu a compensação pela terra nua aos ocupantes de boa fé, mas fez uma proposta que pode evitar a paralisação das demarcações.
No voto, Zanin propôs que o cálculo da indenização a proprietários seja feito em procedimentos judiciais ou extrajudiciais, “nos quais serão verificadas a boa fé do particular e a responsabilidade civil do ente público, não sendo possível a aferição da indenização no mesmo procedimento de demarcação”.
“Por incrível que pareça, o voto do ministro Zanin conseguiu estruturar o voto do Moraes de maneira mais qualificada, de maneira que não inviabilize a demarcação, que coloque os interesses dos povos indígenas dentro dessa indenização e não só os interesses dos ruralistas de serem indenizados”, ponderou Maurício Terena, coordenador jurídica da Apib.
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