Um homem do subsolo
A recente tragédia envolvendo um bolsonarista radicalizado ao ponto da mais extrema dissonância cognitiva coletiva evoca o drama de célebre personagem de Fiódor Dostoiéviski. [1] Personagem-narrador que assim abre seu relato:
“Sou um homem doente… Sou um homem raivoso. Sou um homem sem graça nenhuma. Acho que sofro do fígado. Na verdade, não tenho ideia da minha doença nem sei direito o que dói. (…) Não, meus senhores, eu não quero me curar da raiva”. [2]
O ódio que o alimenta é a doença que o consome — num círculo vicioso quase impossível de romper. A impiedosa autoanálise, obsessiva até, aprisiona mais do que liberta, pois conduz o personagem a um beco sem saída. O narrador se considera intelectualmente superior, mas, ao mesmo tempo, reconhece sua irrelevância social. O paradoxo torna-se insuportável e aos 40 anos o homem do subsolo é dominado pelo ressentimento:
“Final da história, senhores: é melhor não fazer nada! Portanto, viva o subsolo! Apesar de eu ter dito que invejo o homem normal até minha última gota de fel, ainda assim, nas condições em que o vejo, eu não quero ser ele. (Se bem que nem por isso eu deixe de ter inveja dele; não, não, em todo o caso, o subsolo é mais vantajoso!)”. [3]
Memórias do subsolo foi inicialmente publicado em dois números da revista Época em 1864. Ao que parece, pelo menos no século 19, o homem do subsolo contentava-se em exaurir seu ódio e seu ressentimento em prudente solidão:
“Não me dava com ninguém, até evitava falar e, cada vez mais, vivia metido no meu canto”. [4]
Pelo contrário, no século 21, para o bem ou para o mal, o homem do subsolo conectou-se planetariamente, quase sempre se convence que não tem o bastante, fala demais por não ter nada a dizer e, sobretudo, decidiu meter-se em todos os cantos.
(Especialmente na arena política, explorada como fonte incomparável de monetização).
Um tempo enfermo?
O presente impõe um desafio inédito: o subsolo tornou-se a superfície das telas que moldam nosso cotidiano. Não se pense, contudo, que o movimento é acéfalo, pura espontaneidade de uma miríade de atores sociais sem qualquer forma de comunicação.
Para tudo dizê-lo: a morte trágica, absurdo desperdício de vida, de Francisco Wanderley Luiz, não pode ser entendida se aceitarmos a hipótese conveniente do “lobo solitário” ou de um surto psicótico temporário, mas de consequências irreparáveis. Nas duas explicações afasta-se a possibilidade de compreender o ecossistema bolsonarista de desinformação que produz a dissonância cognitiva coletiva, responsável em última instância pelo ato de terrorismo doméstico ocorrido no dia 13 de novembro.
O móvel intelectual da conspiração golpista do governo Bolsonaro pode ser encontrado na hermenêutica terraplanista de Ives Gandra Martins, em sua exegese feita sob medida para os arroubos autoritários do capitão. Em tela, a interpretação carnavalesca, cheia de fantasias e adereços, do polêmico artigo 142 da Constituição Federal de 1988.
(Não se esqueça: a inclusão do controverso artigo foi uma exigência do primeiro ministro do Exército no período da redemocratização, isto é, no primeiro governo civil da Nova República. O ministro do presidente José Sarney, o general Leônidas Pires Gonçalves fechou a tampa da chantagem que assombra o Palácio do Planalto: a Lei da Anistia de 1979 e o artigo 142 de 1988.)
Talvez levando em conta a pouca familiaridade da militância bolsonarista com o ato de leitura, o jurista de ocasião tudo esclareceu no título do artigo: “Cabe às Forças Armadas moderar os conflitos entre os Poderes”.
Pronto!
Viva o jurista — gritaram os exaltados bolsonaristas.
(A rima é pobre, o pleonasmo, deselegante, mas aqui a inteligência é produto escasso.)
O trecho decisivo do manifesto de Gandra Martins fornece o fio de Ariadne de todas as tentativas e de todos os desvarios do golpismo bolsonarista:
“Minha interpretação, há 31 anos, manifestada para alunos da universidade, em livros, conferências, artigos jornalísticos, rádio e televisão é que no capítulo para a defesa da democracia, do Estado e de suas instituições, se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador, para repor, naquele ponto, a Lei e a Ordem, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante”. [5]
Para bom golpista, meia palavra é discurso. A partir de maio de 2021, o texto de Gandra Martins ganhou materialidade no grito de guerra, que, uníssono, passou a ditar o ritmo das manifestações bolsonaristas: “Eu autorizo”. Vejamos um exemplo significativo.
Eis o ambiente da exortação: reunião brasileira da filial da matriz CPAC (Conservative Political Action Conference), incubadora do golpe. Em seu discurso, no dia 4 de setembro de 2021, Bolsonaro criticou fortemente o Supremo Tribunal Federal (STF), atacou sem nomear o Ministro Alexandre de Moraes, que estaria “contaminando a democracia” e, como antídoto, destacou a possibilidade de recorrer, qual a surpresa?, a algum tipo de “Poder Moderador”.
(Uma semana no Condomínio Vivendas da Barra para quem identificar a fonte do antídoto.)
A súplica “Eu autorizo” expressa uma profunda dissonância cognitiva coletiva e sua mais completa tradução equivale a um delírio autoritário: “Eu autorizo o Presidente da República a lançar mão do artigo 142 para resolver o conflito com o STF”.
Numa linguagem menos preocupada com formalidades, os bolsonaristas, quando gritavam a plenos pulmões, “Eu autorizo”, queriam realmente dizer: “Presidente, convoque as Forças Armadas para permanecer no cargo. Está na Constituição!”
Essa alternativa dependia naturalmente da criação de uma atmosfera bélica permanente, caracterizando uma situação de conflito entre os Poderes. Não uma querela qualquer, porém um momento agônico, sem horizonte algum de resolução pacífica.
(Claro: o arcabouço do golpe bolsonarista não teria a força que teve sem o endosso jurídico de Ives Gandra Martins.)
Bolsonaro, o arquiteto da destruição
Começamos a atar as pontas que tornam minimamente compreensível o gesto desesperado de Francisco Wanderley Luiz.
Passemos agora do 4 ao 7 de setembro de 2021: escute com muita atenção os discursos do então presidente Jair Messias Bolsonaro. O bolsonarismo sentia-se confiante o suficiente para tramar à luz do dia.
O 7 de setembro de 2021 foi o dia mais perigoso para a incerta democracia brasileira. Nem mesmo o 8 de janeiro de 2023 se equipara. A excitação golpista chegou a seu ponto máximo, pura ebulição. Nos grupos de WhatsApp e Telegram o clima mesclava euforia, pela certeza da vitória, e apreensão, pela expectativa da ordem que nunca veio.
Hora de recordar a convocação de Bolsonaro em Brasília.
Em meio a mais uma das intermináveis manifestações pró-governo, na Esplanada dos Ministérios, Bolsonaro soltou a língua:
“Não! Não mais aceitaremos que qualquer autoridade, usando a força do poder, passe por cima da nossa Constituição. Não mais aceitaremos qualquer medida, qualquer ação (…) que venha de fora das 4 linhas da Constituição. Nós também não podemos continuar aceitando que uma pessoa específica da região dos 3 Poderes continue barbarizando a população. (…) O Supremo Tribunal Federal perdeu as condições mínimas de continuar daquele tribunal.”
Pouca importa a confusão lógica da frase, a multidão entendeu o bastante para seguir fielmente o roteiro traçado no artigo de Ives Gandra Martins e começou a bradar, em êxtase: “Fora Moraes, Fora Moraes!”. O fecho de ouro foi dado no encerramento, na promessa de uma terra prometida a distância de um mero golpe:
“A partir de hoje, uma nova história começa a ser escrita aqui no Brasil.”
(Você já sabe: trilha sonora do projeto golpista: Ou ficar a Pátria livre, ou morrer pelo Brasil!)
A fim de acelerar o recuo abissal no tempo dessa nova história reacionária, após os achaques em Brasília, o presidente voou para São Paulo e na Avenida Paulista decidiu que não mais valia a pena sopesar as palavras. Como se atravessasse um Rubicão imaginário, levou à multidão à véspera de um gozo coletivo.
“(…) Uma pessoa apenas, um homem apenas, turve a nossa democracia e ameace a nossa liberdade. Dizer a esse Ministro (…): acabou o tempo dele. Sai Alexandre de Moraes! Deixa de ser canalha! Deixe de oprimir o povo brasileiro. Deixe de censurar o seu povo.”
Estado de sítio ou de delírio?
Para desespero de Bolsonaro e seus asseclas, o Ministro Alexandre de Moraes não pediu para sair.
De igual modo, em Brasília, caminhoneiros em caravana, em alegre excursão golpista, não retornaram à estrada – estacionaram seus caminhões na vizinhança da Esplanada dos Ministérios, pois tinham certeza de que o chamado do mito não falharia.
(Hoje sim, hoje sim! Hoje não… O bordão se inverte, mas o malogro permanece.)
A força da dissonância cognitiva coletiva ficou registrada na história brasileira numa cena definitiva.
Deixando a ironia de lado: esse nível de delírio que celebra às lágrimas um inexistente estado de sítio, ou seja, o estabelecimento de uma ditadura militar, é fruto da radicalização sem trégua promovida pelo bolsonarismo. Há no Brasil dezenas de milhões de compatriotas que seguem reféns da midiosfera extremista, que ganhou um reforço tão inesperado quanto poderoso na ação política de Elon Musk, travestido de arauto da extrema direita transnacional.
O gesto suicida do terrorista doméstico do dia 13 de novembro de 2024 não seria sequer concebível sem os discursos de Jair Messias Bolsonaro no dia 7 de setembro de 2021.
[1] Leon Festinger apresentou o conceito em A Theory of Cognitive Dissonance (1957). Em Bolsonarismo: da guerra cultural ao terrorismo doméstico (2023) propus a ampliação da ideia – dissonância cognitiva coletiva –, a fim de incorporar os efeitos das redes sociais na estrutura psíquica da sociedade.
[2] Fiódor Dostoiévski. Memórias do subsolo. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Penguin / Companhia das Letras, 2021, p. 21.
[3] Idem, p. 68.
[4] Idem, p. 77.
[5] Ives Gandra da Silva Martins. “Cabe às Forças Armadas moderar os conflitos entre os Poderes”: https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/ives-gandra-artigo-142-constituicao-brasileira/.
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