Depoimento a Chico Alves
A tarde de 17 de setembro foi histórica para o Maracanã. O jogo entre Flamengo e São Paulo, primeiro da decisão da Copa do Brasil, teve renda de R$ 26 milhões, recorde absoluto do estádio. A arrecadação foi turbinada pelos preços estratosféricos dos ingressos: os mais baratos R$ 400 e os mais caros R$ 4.500.
A grandeza excepcional da cifra pode ser medida pelo fato de que somente nessa partida o clube carioca arrecadou mais que em todo campeonato carioca. O recorde de bilheteria – recebido com vaias dos torcedores quando anunciado no placar eletrônico – traduz em números a transformação daquele estádio-símbolo da cultura popular em arena lucrativa, ao estilo europeu.
“Eu acho que hoje o futebol do Brasil e do mundo está impregnado dessa ideologia neoliberal, de ganhar dinheiro acima de tudo”, comenta o fotógrafo Ricardo Beliel, um dos nomes mais importantes da imprensa brasileira, que por décadas frequentou o estádio, seja como torcedor ou profissional. “Tudo são números, estatísticas, valores altíssimos, ganhos astronômicos dos jogadores”.
A seguir, Beliel dá seu testemunho com palavras sensíveis e imagens belíssimas sobre o Maracanã que deixou a marca no imaginário popular brasileiro e não existe mais.
O SOM DO ESTÁDIO
Eu fui três vezes nesse novo Maracanã: na final da Olimpíada e em dois jogos do Flamengo. Eu estranhei muito, parecia mais uma arena americana de jogo de baseball, como há nos Estados Unidos. No intervalo, os alto-falantes tocavam música pop americana, ao contrário do que acontecia no passado.
Era tão comum no Maracanã tocarem samba… Nos alto-falantes, ou se tocava samba ou não se tocava nada. Mas mesmo quando não tocava no sistema de som, as torcidas cantavam. Principalmente os sambas-enredo daquele ano, junto com as baterias das torcidas. Tinha uma energia popular forte. Essa trilha sonora de música americana não combina em nada com o estádio. Aquilo causou estranhamento muito grande.
MAIS CONFORTO
Em termos de comparação, o Maracanã hoje é mais confortável pra quem assiste, né? Antes você sentava no cimento duro, os banheiros eram imundos, a água escorria pelo chão, você entrava no banheiro com dois dedos de água correndo pelo chão, misturado com urina… Era extremamente fedorento. O estádio não tinha o conforto que passou a ter agora.
DIVISÃO POR CLASSES
Antes o estádio espelhava as classes sociais do Brasil. A geral foi feita com o nível do piso abaixo do gramado. Então, as pessoas que estavam longe tinham que esticar o pescoço pra ver o jogo. E no gramado ainda tinham as pessoas que trabalhavam, inclusive eu, que ia lá fotografar. Tudo atrapalhava o “geraldino” (apelido do frequentador da geral). Era quase uma catacumba.
A classe média um pouquinho mais estabelecida sentava nas cadeiras, com o mínimo de conforto, embora as cadeiras também fossem duras, sujas. E na arquibancada era aquela classe média mais popular, que todos nós éramos. Sentávamos no cimento puro.
DEPOIS DA MELHORIA
Então, eu acho que merecia um melhoramento no conforto, na acessibilidade, tudo isso… Mas o Maracanã vibrava em uma frequência própria. Você vê a Argentina, que tem o seu jeito de torcer. Assim como existe um jeito de torcer no Brasil. Mas nós incorporamos um jeito de torcer europeu, por conta dessas arenas, né? Um jeito que não combina com a cultura popular carioca.
“Como os ingressos ficaram muito caros, o acesso dos economicamente desfavorecidos ficou difícil. Então, você tem o pessoal de uma classe média pra cima que se habituou a ver futebol na televisão e o comportamento acaba se aproximando muito da forma como se torce na Europa”.
ESPETÁCULO DAS BANDEIRAS
Era muito bonito no Maracanã, antigamente, aquela quantidade de bandeiras levadas pelas torcidas. Agora é quase coreografado. Vendo pela televisão, parece que hoje esse espetáculo das torcidas é dirigido pelos próprios clubes. Fornecem essas bandeirinhas, esses apetrechos no estádio, pra que os torcedores façam aquela coreografia com esses elementos todos. Não é uma coisa tão espontânea como era no passado.
Antes de ser jornalista e ter acesso ao gramado, eu fui um torcedor que ia frequentemente ao Maracanã. Eu morava na Ilha do Governador e ia de ônibus até a estação da Leopoldina, com a minha bandeira pra fora da janela, com prazer enorme, e depois caminhava até o estádio sem me sentir inseguro.
SENSAÇÕES DO ESTÁDIO ANTIGO
Eu tive duas sensações de certa forma diferentes ao frequentar o Maracanã. Uma como torcedor, outra como jornalista, cobrindo jogos no gramado e nas arquibancadas.
Eu frequentei todos os ambientes do Maracanã como torcedor, principalmente a arquibancada. O estádio tinha uma energia humana, uma coisa de contato pessoal, de as pessoas se abraçarem, as pessoas entrarem juntas no Maracanã, como se fosse uma única massa, uma energia mística, sabe?
“O estádio era um caldeirão na época em que entravam lá 150 mil, 200 mil pessoas, que se espremiam sentadas, umas juntas das outras. As pessoas de todas as classes sociais se encostavam. Nas cadeiras especiais, não. Ali era só a elite. Mas na arquibancada e na geral, principalmente, eram todas as classes sociais que se misturavam”.
Tinha só a divisão das torcidas, aqueles do outro lado eram os seus inimigos por 90 minutos. Mas não inimigos de morte. A disputa não era só de quem era melhor em campo, as torcidas disputavam também quem era melhor. Hoje, com essa medida de priorizar o estádio para a torcida que tem mando de campo, meia dúzia de pessoas é que compram ingresso para torcer pelo time adversário. Você não tem mais essa disputa de torcida. Aquilo tudo era um um espetáculo fantástico.
OLHAR DE FOTÓGRAFO
Já como fotógrafo, entrava em campo pelo túnel que dava acesso ao gramado, que era subterrâneo. Você está ali apenas profissionalmente mas aquilo te tocava de tal maneira que todas as pessoas que eu conheço que foram trabalhar lá, e não necessariamente apaixonadas por futebol, ficavam impressionadas com aquilo, com aquela energia pulsando ali no estádio.
Eu fotografava muito do gramado em direção à geral, que era o mais próximo do campo e também porque as pessoas olhavam na minha direção. Recentemente, comecei a reunir essas fotos para um projeto de livro a que dei o título de “Na cara do gol”.
OS TORCEDORES DA GERAL
Grande parte dos frequentadores da geral eram pessoas das classes mais desfavorecidas da sociedade carioca. Eram pessoas que vinham das favelas, dos subúrbios. Inclusive era outro espetáculo fantástico quando o trem parava ali na estação, em frente ao Maracanã, e a multidão de torcedores saía em direção ao estádio.
“Naquela época os trens eram extremamente maltratados. Não que hoje seja muito melhor, mas naquela época, por exemplo, alguns vagões não tinham portas, as pessoas vinham penduradas como pingentes nos trens, vinham como surfistas ferroviários, em cima dos vagões abarrotados de pessoas”.
Quando paravam ali na estação próximo ao Maracanã descia aquela massa de gente. Era uma coisa impressionante aquilo. Grande parte dessas pessoas ia para a geral, o espaço mais acessível em termos econômicos.
O SOFRIMENTO E A ENERGIA
Você via ali o sofrimento das pessoas que viviam em condições sub-humanas, muita gente sem dente, muita gente magra por falta de uma boa alimentação, muita gente com marcas no rosto, era visível a condição social desfavorável. Uma parcela da população brasileira muito maltratada.
Apesar disso, tinha uma energia humana, um carinho e um amor por algo como futebol, pelos seus ídolos. Havia uma comunhão entre aquelas pessoas quando torciam juntas, abraçadas.
“Algumas pessoas se preparavam como no Carnaval, também iam lá caracterizadas. E se tornaram personagens interessantes. Na arquibancada tinha isso também. Era uma coisa muito legal né de você ver essa expressão da cultura popular, das pessoas se caracterizarem, das pessoas criarem formas de torcer”.
TORCIDA PARA A TV
Isso não tem mais. Hoje a televisão tem uma influência muito grande no comportamento das pessoas, mais do que naquela época. Então, tem uns torcedores que ficam na mureta mais pra aparecer na televisão. Dá pra ver que as pessoas estão ali mais porque querem aparecer na televisão do que propriamente porque são torcedores que espontaneamente criaram personagens, independente de aparecer na mídia ou não.
FUTEBOL NEOLIBERAL
Eu acho que hoje o futebol do Brasil e do mundo está impregnado dessa ideologia neoliberal, de ganhar dinheiro acima de tudo. Tudo são números, estatísticas, valores altíssimos, ganhos astronômicos dos jogadores.
Quando criança eu era vizinho do Nilton Santos (jogador que foi ídolo do Botafogo e da seleção brasileira na década de 60) e meu principal amigo de escola primária era filho do Quarentinha (artilheiro do Botafogo, que jogou nas décadas de 50 e 60).
Eram pessoas iguais a nós. Eu frequentava a casa dele (Nilton Santos), não havia essa diferença tão grande em termos sociais, como hoje. Agora os salários jogadores fazem deles figuras de outro planeta, a gente não tem contato com com o mundo dessas pessoas.
“Os estádios, as chamadas arenas, incorporaram essa ideologia do ganhar acima de tudo não é um espaço que convida a população a frequentá-lo e a expressar culturalmente o seu amor pelo futebol. Ao contrário, as arenas hoje são espaços de arrecadação financeira. Então, os ingressos são caros e a frequência é elitizada, no sentido econômico”.
Eu acho que tudo isso acaba influenciando muito ao próprio jogo.
ÍDOLOS HOLLYWOODIANOS
O esporte no Brasil é a expressão da cultura popular. Garrincha, Zico, Roberto Dinamite, essas pessoas, além de grandes artistas da bola, eram na verdade ídolos da população, pessoas em quem a população se espelhava. Se um jogador passa a ser exemplo de uma condição econômica totalmente inalcançável para 90% da população, como é que você vai se espelhar nessa pessoa?
“Como você vai se ver naquela pessoa, que parece um herói de outro planeta, um personagem hollywoodiano a que você não tem acesso? Jogadores de outra época frequentavam a praia, iam para o pagode, desfilavam nas escolas de samba. Agora não. Então, o futebol se afasta cada vez mais da vida real das pessoas”.
O Maracanã representa a mudança que o mundo passa, não só em relação ao futebol, com esse culto do dinheiro, esse culto do exibicionismo, da vaidade, essa mania da celebridade.
RECORDE DE R$ 26 MILHÕES
A renda de R$ 26 milhões em um só jogo é uma vergonha. Até porque os clubes ganham com publicidade, com direitos de transmissão, um monte de outras formas. Por isso há essa enorme concentração de dinheiro na mão de alguns jogadores, são poucos os que ganham tanto. Os clubes que não ganham tanto acabam sendo defenestrados dos campeonatos.
Hoje, o Flamengo é um clube dito popular, mas é um clube nas mãos de empresários neoliberais, que só pensam em dinheiro, em fazer acordos políticos horrorosos. Mas os outros também não são muito diferentes. O futebol vai se afastando do povo.
Ricardo Beliel inicia seu interesse por arte estudando gravura no MAM/RJ com Fayga Ostrower, Ana Letycia e Ruddy Pozzati e no Centro de Estudos de Arte Ivan Serpa. Em 1973 começa a fotografar, trabalhando com músicos como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Egberto Gismonti e O Terço. Em 1976 entra para o jornalismo como fotógrafo contratado do jornal O Globo, passando depois por Manchete, Placar, Fatos e Fotos, Veja, Isto É, agência F-4, Manchete Esportiva, Jornal do Brasil e O Estado de São Paulo. Foi editor de Fotografia da revista Manchete e sub-editor no jornal Lance, no qual participou da equipe fundadora. Durante seis anos fez parte da agência GLMR & Saga Associés em Paris, produzindo reportagens fotográficas na América Latina e África. Como jornalista e fotógrafo independente colaborou com Grands Reportages, Figaro Magazine, VSD Magazine, Time, National Geographic, Victory, Voyage, Colors, Geo, La Vanguardia, Los Tiempos, Ícaro, Terra, Próxima Viagem, Vice, Placar e Angola Hoje, entre outros.
Recebeu da Organização Internacional de Jornalistas o prêmio Interpressphoto e da Confederação de Jornalistas da União Soviética o prêmio Alexander Rodchenko, ambos em 1991. Foi finalista cinco vezes do Prêmio Abril de Jornalismo, sendo vencedor em três anos consecutivos. Em 1997 foi finalista no Prêmio Esso de Jornalismo com uma reportagem sobre a expedição da Funai para estabelecer o primeiro contato pacífico com os índios korubo na floresta amazônica. Participou de 106 exposições em locais como Kunsthaus, em Zurich, Museo Carillo Gill, na cidade do México, Museo de Bellas Artes, em Caracas, Centro Cultural Banco do Brasil, Centro Cultural Telemar, Museu de Arte do Rio/MAR e Centro Cultural Justiça Federal, no Rio de Janeiro, Museu de Arte de São Paulo, Museo de Burgos, Archivo Historico Provincial de Salamanca e Biblioteca Pública de Ávila, Espanha.
É graduado em jornalismo na Faculdade Hélio Alonso e pós-graduado em Fotografia nas Ciências Sociais na Universidade Cândido Mendes, em Comunicação e Políticas Públicas na Escola de Comunicação/UFRJ e Teoria e Prática da Educação de Nível Superior na ESPM/RJ. Foi professor da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), na Universidade Estácio de Sá, na Universidade Candido Mendes e no Ateliê da Imagem.
Jurado do Prêmio Petrobras de Jornalismo em 2018. Prêmio Mario de Andrade do IPHAN. Membro da Academia Brasileira de Letras e Artes do Cangaço e da Academia Brasileira de Estudos do Sertão Nordestino.
Autor do livro Memórias Sangradas, finalista do Prêmio Jabuti 2022
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