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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

Mulher negra na Presidência? Desde que não seja aqui…

O Brasil não quer uma Kamala Harris para chamar de sua
22/08/2024 | 05h00

Depois do primeiro homem negro chegar à Presidência dos Estados Unidos, Michelle e Barack Obama trabalham para que a primeira mulher negra chegue ao epicentro do poder. Por isso discursaram na Convenção Nacional do Partido Democrata, incendiando a multidão em Illinois, que abarrotou os mais de 23.500 lugares do United Center, a casa do famoso Chicago Bulls, usando todo o seu poder de fogo para incentivar os correligionários a trabalhar para que a atual vice-presidente e companheira de duas décadas, Kamala Harris, suba de cargo.

Nossas avós já diziam que flecha disparada e palavra proferida não voltam.  Esqueçam todo o charme visual do casal que esteve por oito anos neste mesmo núcleo nevrálgico do país mais rico do mundo. O forte da dupla é a oratória. Uma combinação de conteúdo e forma de falar que consegue acertar o alvo com segurança e precisão impressionantes. O poder dos Obama reside nas palavras que disparam.

Numa tacada colocaram o discurso do adversário Donald Trump contra ele mesmo, usando seu etarismo, racismo, misoginia, suas manias e seus bordões, aliadas ao chamamento pela união, a provocação dos medos da nação quanto ao futuro e acalentando corações abalados por uma enorme, gigantesca, implacável… carência. Quando sacaram as palavras “mãe”, “avó” e “afeto”, quebraram ao meio todo mundo. Caso o placar do Bulls estivesse ligado daria fim da partida com muitos pontos para os donos da casa quase literalmente, pois Chicago é o berço de Michelle, onde Barack foi parar ainda muito novo e onde os dois têm raízes fundas.

Quem assistiu “Eu não sou seu negro”, documentário dirigido pelo haitiano Raoul Peck a partir do livro inconcluso de James Baldwin  “Remember this house”, certamente lembra da fala de James sobre o sentimento de saudade do país. Já residindo na França, ele foi desconcertante quando afirmou não sentir nenhuma falta dos Estados Unidos, mas do quintal da sua família, das recordações e dos signos que o levam aos que ama e ao seu grupo, o que é bem diferente de sentir falta de uma nação hostil desde sempre a ele. A fala dos Obama alfineta com uma agulha de tricô o coração desta ideia específica de “amor à pátria”, que é muito mais “mátria”.

Vizinhança

Nós, os vizinhos, ficamos nas janelas chamadas televisão e internet acompanhando o show.  Eu mesma fiquei até tarde assistindo e no final, a pergunta: E nós com isso? É óbvio que temos muito a ver não apenas por que ocupamos o mesmo continente e o planeta, mas porque compartilhamos o mesmo DNA. Guardadas as devidas proporções, Michelle, Barack, Kamala…, eles e outros nos EUA possuem trajetórias e pertencimentos diversos, mas compartilham conosco da mesma desconfiança, das mesmas instrumentalizações e sabotagens seculares da elite branca. Para o bem, para o mal ou para o mais ou menos, ele e elas sabem capitalizar isso simbolicamente.

Novamente a pergunta que não cala: E nós? O Brasil que se encanta com estas pessoas e estas falas, que diz se preocupar com a escalada do extremo do extremo à direita no nosso país e no mundo, acha não apenas bobagem, mas um absurdo, a briga interna por candidaturas negras, por uma mulher negra nos tribunais, por cotas, por lugares nas grandes empresas, por representativa de verdade e não a coisa fake de aparente e conveniente inclusão que frequentemente vemos.

Esqueçamos por agora aquele pedaço de país que resolveu se alistar nas fileiras neo nazis. Quando digo “nós” falo de uma parcela de sociedade e de mídia toda derretida pela possibilidade de ver Trump nocauteado (e sim, seria uma delícia) por uma mulher negra e ainda por cima fruto da imigração, mas que não é capaz de aderir com o mesmo entusiasmo quando estas lutas são aqui, na própria casa. Curioso que a população negra norte-americana seja apenas 14 por cento do seu total e a brasileira, 56 por cento.

Neste ponto surge outra velha pergunta: “Onde guardamos nosso racismo?”

Muito interessante ver a biografia de Michelle Obama ou Viola Davis venderem rios de dinheiro no Brasil. Elas são inegavelmente belas figuras históricas do nosso tempo e merecedoras de todo o sucesso, mas pergunto-me quanto êxito uma mulher negra brasileira precisa ter para conseguir tanta vendagem.

No discurso de apoio a Kamala, Michelle e Barack falaram em “preparo”, “esperança”, “dignidade” e “propostas”.  Falaram em representação também, mas com outras palavras. Num exercício de imaginação, fiquei pensando em quais seriam as manchetes caso tivéssemos por aqui alguém como elas pleiteando o topo da liderança e da atenção nacional. A “nuvem de palavras” veio fácil: Polarização, cotas, divisão, racismo, religião, minoria …”. Representação seria trocada por identitarismo, grupos identitários, pautas identitárias ou qualquer coisa similar, mas sempre no sentido pejorativo. Preparo também apareceria, mas para destacar a falta dele ou um “excesso” de academicismo.  Dignidade e propostas não seriam inclusas. Esperança, jamais! Como posso ter certeza? Porque já é assim. Foi assim muito recentemente, quando ousaram desejar uma mulher negra para o Supremo Tribunal Federal.

Para metade do Brasil, Kamala e Michelle são muito bonitas, inteligentes, carismáticas e competentes desde que fiquem por lá. A “Kamala brasileira” precisa ser impedida de florescer, desacreditada na largada e se conseguiu começar a corrida, que seja interrompida … ainda que no ninho, ainda que seja na base da força bruta e na covardia da tocaia. Bala disparada também não volta.

Novembro vem aí e desejo sorte para a  “sista”, pois caso vença começará outra fase infinitamente mais dura não apenas porque ela será aquela que preside os Estados Unidos da América, um lugar osso duro de roer por alguns milhões de motivos, mas porque será triplamente mais cobrada do que foi Barack Obama. Inclusive por nós, seus vizinhos e vizinhas, que compartilhamos de origens semelhantes, pois nada nos blinda do processo histórico que nos trouxe até aqui.

Finalizo esta longa reflexão lembrando que teremos eleições também em breve. Há quem esteja se movendo no meio do lodo da hipocrisia brasileira. A jornalista Roberta Garcia, por exemplo, sozinha em sua conta no Instagram se propôs a entrevistar candidatas negras à prefeituras e câmaras de vereadoras em todo o país. Que tal acompanhar?

Pense menos nas palavras religião, identitária e polarização da forma como temos usado na política atualmente e mais nos vocábulos representação, proposta, dignidade, preparo.

E esperança.

 

 

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