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Valdemar Figueredo (Dema)

Idealizador e coordenador desde 2017 do Observatório da Cena Política Evangélica pelo Instituto Mosaico (www.institutomosaico.com.br). Pós-doutorando em sociologia pela USP. Doutor em ciência política (antigo IUPERJ, atual IESP-UERJ) e em teologia (PUC-RJ). Pastor da Igreja Batista do Leme e da Igreja Batista da Esperança, ambas na cidade do Rio de Janeiro.

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Mulher, onde estão aqueles teus acusadores?

Sermão dominical pregado na Igreja sobre o PL1904/24: Criança não é mãe e a bancada evangélica não é santa, nem pura
18/06/2024 | 05h49

Na quarta-feira (12/06/2024), foi aprovado na Câmara dos Deputados o requerimento de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) para que o Projeto de Lei 1904/24 tramitasse em regime de urgência.

Provavelmente os patrocinadores dessa peça jurídica estão convictos que não há necessidade de diálogo, muito menos ouvir os diversos seguimentos da sociedade implicados diretamente no tema.

Não se trata de ser contrário ou favorável ao aborto. Não se trata de uma discussão moral, muito menos de uma disputa política entre conservadores e progressistas.

Trata-se da perversão de uma bancada cristã no Congresso Nacional, católicos e evangélicos, que usa os rótulos eclesiásticos e as fachadas dos templos para se locupletar (enriquecimento que ocorre em detrimento do prejuízo de alguém).

O PL em questão propõe mudar o Código Penal brasileiro equiparando o aborto após 22 semanas de gestação, mesmo em casos de estupro, ao crime de homicídio simples.

Caso aprovado, isso implicaria no aumento da pena máxima para até 20 anos de reclusão para as mulheres que optarem pelo aborto.

O Código Penal (artigo 128) vigente permite o aborto em três situações: (I) gravidez decorrente de estupro, (II) risco à vida da mulher e (III) anencefalia fetal (não formação do cérebro do feto).

Que fique muito claro, no Brasil, persiste a criminalização do aborto com apenas três exceções que remetem a casos dramáticos, excepcionais. Segundo a nota do grupo jurídico Prerrogativas, “os dois primeiros estão previstos no Código Penal de 1940 e o último foi permitido via decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012”. [1]

Que fique registrado que a criminalização do aborto no Brasil é regra antiga e profunda, com exceções tímidas no limite das possibilidades. Portanto, o PL não é uma peça de conservadores, mas uma proposta reacionária. Antes fosse só ignorância, estamos diante do pior tipo de perversidade, a que é levada a cabo em nome de Deus.

Vamos aos dados

O médico pediatra Daniel Becker na sua coluna no Jornal O Globo na sexta-feira (14/06/2024) apresentou dados alarmantes tendo por bases o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Em 2022, foram registrados 75 mil estupros no Brasil. Em 76% dos casos, as meninas que foram vítimas tinham menos de 14 anos (52 mil).

Notifica o especialista que 10% dessas vítimas eram crianças de 0 a 4 anos (7.500 bebês estuprados). 18% eram crianças de 5 a 9 anos (13.500 crianças pequenas violadas).

O dramático e pavoroso é que algumas crianças já com 9 anos podem engravidar após serem vítimas de estrupo. O estupro é um fenômeno predominante familiar no nosso país.

O que gera na vítima sequelas emocionais para o resto da vida. Não é só carregar uma gravidez, é carregar uma culpa que pode ser insuportável. Estima-se que “quase 70% dos estupros acontecem na casa da vítima. 86% dos abusadores são conhecidos e 64% são familiares”, .[2]

Os números são sabidamente subnotificados. O sofrimento também está subnotificado e nunca poderá ser mensurado na sua real desumanidade.

É perturbador saber que, conforme fartamente divulgado como repercussão deste nefasto PL, no Brasil, a cada minuto, pelo menos duas pessoas são estupradas.

Trata-se de estimativa do Ipea em que “os pesquisadores cruzaram bases de dados de segurança pública e saúde, de 2019, e calcularam que 822 mil violências deste tipo ocorram no país anualmente, número que pode chegar a 2,2 milhões”. [3]

O ginecologista Olímpio Moraes, diretor médico da Universidade de Pernambuco, em entrevista ao Jornal O Globo, desloca o fenômeno da área criminal ou moral para a que efetivamente merece ser tratada: saúde pública.

O impacto da gestação entre crianças e adolescentes é de tal monta que deveria alarmar a sociedade sob o ponto de vista da saúde:

Há pelo menos 14 mil gestantes abaixo de 14 anos e só 4% dessas meninas têm acesso ao aborto por estupro.

Uma menina de 10 anos tem risco de morte de duas a cinco vezes maior por complicações na gestação e sequelas.

Além disso, no Brasil, a principal causa de mortes de adolescentes são complicações da gravidez e suicídio devido à violência sexual. [4]

Em nota divulgada na sexta-feira (14/06/2024), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se posicionou favorável à aprovação do PL1904/24.

Ainda que o debate público tenha quase que exclusivamente apontado a motivação religiosa pregada por Igrejas Evangélicas para o recuo dos direitos, historicamente, este é um tema caro à Igreja Católica.

Ainda que laica, a República Federativa Brasileira nunca esteve livre da forte influência política da Igreja Católica para fazer valer o que julga ser os melhores valores.

Mais cautelosos no tom, não tão estridentes como a bancada evangélica, mas absolutamente identificados com o espírito reacionário do PL 1904/24, os bispos católicos não tergiversam:

“Cabe ressaltar que as 22 semanas não correspondem a um marco arbitrário. A partir dessa idade gestacional, realizado o parto, muitos bebês sobrevivem. Então, por que matá-los? Por que este desejo de morte? Por que não evitar o trauma do aborto e no desaguar do nascimento, se a mãe assim o desejar, entregar legalmente a criança ao amor e cuidados de uma família adotiva? Permitamos viver a mulher e o bebê”. [5]

O Estado é laico

Necessário afirmar que é absolutamente legítimo que os cristãos tenham valores morais e os defendam. Caso uma família, evangélica ou católica, tenha a desventura de lidar com a situação de uma gravidez imposta por um agressor e mesmo assim resolver levar a gravidez adiante, não abortar, tudo bem.

Para o Estado, tudo bem se as pessoas implicadas optarem pela vida tal como recomenda a CNBB e a bancada evangélica. Por questões morais uns dizem que o aborto sob hipótese alguma pode ser admitido, enquanto outros, por crença religiosa, creem que o aborto sob todas as hipóteses é pecado.

A filigrana jurídica que não pode ficar obscura no debate ético: as nossas convicções morais ou as nossas experiências de fé não podem ser impostas como força de lei. A base do Estado Democrático de Direito é a pluralidade, inclusive de crença e valores.

Enfaticamente, repito que no Brasil o aborto é criminalizado e proibido e só permitido nos casos excepcionais: se a gravidez for decorrente de estupro; se representar risco à vida da mulher; e em caso de anencefalia fetal (não formação do cérebro do feto).

Incorre em erro, seja por ignorância ou má fé, quem acentua que o aborto é legalmente permitido no Brasil o que justificaria uma cruzada medieval para colocar as coisas nos seus termos.

O argumento que a maioria deve impor os seus valores às minorias é fajuto, tanto em termos da filosofia política, como em termos da boa e sadia leitura bíblica. Tudo que Jesus ensinou jamais teve ares de imperativos legais que deviam ser impostos pelos seus seguidores.

Seja no Sermão do Monte (Mateus 5, 6 e 7) em que Jesus prega sobre interioridade e dever ou nos textos constitucionais dos Estados Democráticos margeados pelos direitos fundamentais iluministas, afirmativo da inerente dignidade da pessoa humana e os seus correspondentes direitos humanos, a base comum é a responsabilidade pessoal. Seja o cristão perante Deus ou o cidadão diante do Estado, a responsabilidade é pessoal e intrasferível, exceto no caso de incapazes.

Compreensível e admissível que os cristãos queiram compartilhar os seus valores com a sociedade e o façam por meio do anúncio diuturno.

No seguimento a Jesus, o anúncio se dá mais pela força do exemplo do que tentar, à força, impor leis dominando as estruturas das instituições do Estado.

Pelos desmandos, silêncio dos bons e insistentes tentativas de demonstração de força e testosterona, nossa geração de cristãos no Brasil está trabalhando rápido e forte para gestar uma próxima geração avessa às igrejas, não obstante com abertura para o divino e até mesmo com disposição para seguir a Jesus no sopro livre do Espírito Santo.

Os tais operadores da teologia do domínio, antibíblica e avessa às pequenas comunidades periféricas, estão vergando tanto o sentido de ser EVANGÉLICO que podem ser determinantes no curto prazo para formação de uma sociedade brasileira pós-cristã. Os sinais de um tempo sombrio estão escancarados diante dos nossos olhos.

Testemunho

Em dias estranhos, quando nas igrejas a tentação para dominar se impõe e a disposição para amar e servir se esvai, nossa alma clama pelos profetas. Profetas surgem no contrafluxo da multidão que marcha, seja para o pináculo do templo ou para o trono no palácio do poder (Lucas 4.1-13).

Profetas que buscam as meninas violentadas não para lhes dizer o que fazer, mas para amá-las como se não houvesse amanhã e apoiá-las como vítimas que são e não como criminosas.

Só quem vive nas margens pode entender o porquê Jesus estabeleceu o amor como princípio fundamental da interpretação da lei. O mestre de Nazaré não coisificou as pessoas em detrimento da divinização da lei. Preferiu relativizar a lei escrita em pedras e olhar profundamente para a pecadora.

Quem escreve poesia na areia da praia não cultiva a ambição de reclamar por direitos autorais. Os escribas e fariseus entraram numa de lembrar a Jesus o que Moisés havia escrito, na pedra, sobre penas para mulheres que fossem apanhadas em flagrante adultério. Só quando a multidão que reclamava por justiça dispersou foi que Jesus se dirigiu à mulher:

“Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? Respondeu ela: Ninguém, Senhor! Então, lhe disse Jesus: Nem eu tampouco te condeno; vai e não peques mais” (João 8.1-11).

Posso imaginar, ver e sentir o meu amado mestre, senhor e pastor, chegando naquela casa triste, com cortinas fechadas, escura, silenciosa. A dor da culpa não é atenuada porque escolheram não falar sobre.

Preferiram dissimular como se o esfregão que retirou a mancha de sangue do chão tivesse poderes mágicos para purificar também a alma. É domingo, mas hoje a família não vai para a Escola Bíblica Dominical. Crianças e adolescentes fazem perguntas embaraçosas e é inimaginável falar na igreja o que resolveram calar em casa.

Enquanto o pai prepara sem apetite o almoço, a mãe sente gosto de morte olhando alheia para o nada. O filho menor aperta o teclado do videogame com tanta força que parece socar o mundo.

No quarto, sozinha, a menina descansa o seu corpo de 10 anos que ela parece não conhecer mais. Apagou da memória o rosto do agressor, mas não consegue deixar de sentir a dor física. Sobre as dores da alma, ela sente muito, mas não entende nada. Ora se sente culpada, ora envergonhada…

Do seu quarto ouve que há alguém na porta de casa chamando. Como não estava conseguindo olhar para os pais nem brincar com o irmão, imagina receber visita! Ninguém sabia. Ninguém poderia saber. Nunca.

Logo, gentilmente, ouve batidas na sua porta. Antes de abrir, avexada, recoloca a boneca na prateleira para que ninguém soubesse que ela a estava penteando.

Jesus entra, chama todos da casa para o quarto. Sem dizer nada, olha amorosamente para cada um. Observa o cão calado, mas se detém no olhar expressivo e cheio de vida da boneca que acabara de ser devolvida à prateleira.

Jesus com dois passos alcança a boneca e entrega à menina. Ao ver os braços estendidos para lhe devolver a infância, ela se lança aos seus braços e em posição fetal fica por um instante eterno no seu colo.

Boneca numa das mãos enquanto a outra estava suspensa para chupar o dedo, coisa que só fazia às escondidas para não parecer infantil demais.

Silencioso e plenamente ali, tendo a menina no colo, enquanto acariciava os longos cabelos dela, disse Jesus:

“Filinha, eu sei que, com muita tristeza, você e seus pais resolveram interromper a sua gravidez. Talvez você tenha que aprender a lidar com a lembrança do abusador, bem como com acusadores na família, na escola e na igreja. Mas, sabe, eu te amo tanto… Eu não te condeno! Você vai ficar bem. Sabe o que eu escrevi na areia da praia enquanto os legisladores tentavam me convencer a subscrever o PL? Eu escrevia um acalanto que minha mãe cantarolava quando eu era pequeno: ‘A sua misericórdia vai de geração em geração sobre os que o temem. Agiu com o seu braço valorosamente; dispersou os que, no coração, alimentavam pensamentos soberbos. Derribou do seu trono os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos (Lucas 1.46-56).’ Menina, volta a brincar. Deixo a sua boneca, mas estou levando a sua culpa”.

 

[1] Nota do Grupo Prerrogativas sobre o Projeto de Lei 1904/24 que propõe mudar o Código Penal brasileiro equiparando o aborto ao crime de homicídio simples. Disponível em:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2024/06/grupo-juridico-diz-que-pl-antiaborto-e-abominavel-e-obriga-criancas-a-gestarem-filhos-de-estupradores.shtml. Acesso em: 14 jun. 2024.
[2] O PL do Estupro: afronta a toda a sociedade. Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/daniel-becker/post/2024/06/o-pl-do-estupro-afronta-a-toda-a-sociedade.ghtml. Aceso em: 14 jun. 2024.
[3] A cada minuto, duas pessoas são estupradas no Brasil, diz Ipea. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2023-03/cada-minuto-duas-pessoas-sao-estupradas-no-brasil-diz-ipea. Acesso em: 14 jun. 2024.
[4] Aborto legal: ‘80% dos estupros são contra meninas que muitas vezes nem sabem o que é gravidez’, diz obstetra. Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2024/06/14/aborto-legal-80percent-dos-estupros-sao-contra-meninas-que-muitas-vezes-nem-sabem-o-que-e-gravidez-diz-obstetra.ghtml. Acesso em: 14 jun. 2024.
[5] Nota da CNBB sobre o PL1904/2024. Disponível em: https://www.cnbb.org.br/nota-cnbb-pl-1904-2024-debate-aborto/. Acesso em: 16 jun. 2024.

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