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Andrea Dip

Jornalista investigativa e estudante de psicanálise. Autora do livro-reportagem “Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder". É pesquisadora na Freie Universität de Berlim e apresenta o podcast Pauta Pública na Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

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“Não é possível ser antifascista sem ser feminista”

Em entrevista, filósofa polonesa Ewa Majewska fala sobre porque o feminismo deve estar no centro da militância antifascista
18/12/2024 | 06h55

Ewa Majewska é uma filósofa feminista, ativista política e escritora polonesa, membro do Institute of Cultural Inquiry (ICI) em Berlim, Alemanha. Autora de vários livros, entre eles “Feminist Antifascism: Counterpublics of the Common” (Antifascismo feminista: Contrapúblicos do comum, em tradução livre), ela sentou comigo por algumas horas para falar sobre resistência, fascismo e antifascismo e sobre a noção de família, que foi apropriada pela extrema direita.

Na entrevista, ela reflete sobre como as mulheres pesquisadoras são pouco ouvidas ou ignoradas na academia: “até que as feministas ocupem uma posição central no discurso de esquerda, seremos, no máximo, educadamente convidadas a dizer algo de vez em quando”.

E argumenta que a esquerda precisa deixar seus preconceitos de lado e pesquisar a instituição da “família” — conceito que foi apropriado e distorcido pela extrema direita para gerar pânico moral: “As pessoas têm medo da revolução, porque pensam ‘que diabos, o mundo inteiro, como o conhecemos, vai entrar em colapso’. E a ideia feminista é profundamente revolucionária”.

A filósofa discute ainda a profunda influência que organizações ultraconservadoras exercem sobre o Estado e a sociedade.

Mas apesar do levante reacionário atual, Ewa destaca os novos movimentos de resistência que surgem globalmente: “Temos uma revolução sexual e de gênero em massa vindo das camadas mais jovens da população”.

“Não é possível ser antifascista sem ser feminista”

Estamos vivendo um momento em que a extrema direita neoliberal fascista se organizou internacionalmente em redes muito eficientes, com questões de gênero no centro de sua ideologia. Me lembro que em uma conferência que fizemos juntas em Berlim, você disse que não era possível ser antifascista sem ser feminista. No entanto, as discussões de gênero e sobre feminismo ainda parecem muito periféricas nos debates políticos da esquerda. Por que você acha que isso acontece?

Antes de mais nada, gostaria de dar um aviso: quando digo mulheres ou mulher, também estou falando de pessoas que se identificam como mulheres, que passam por mulheres, que foram socializadas como mulheres ou que estão tentando alcançar uma determinada versão de feminilidade, porque para algumas pessoas isso é realmente uma conquista e para outras é tentar ser, digamos, não binárias mas que também são rotuladas como femininas e, portanto, oprimidas.

Acho importante começar desse jeito porque a transfobia contra mulheres se localiza como um medo do “outro”, entendido como alguém que não é macho, que é feminino e cuja feminilidade não serve para fins reprodutivos. Na verdade, isso é ainda mais irritante para os fascistas, porque você pode querer tentar engravidar uma mulher cisgênero, mas com mulheres trans você nem sequer pode fazer isso. Então, para mim, não há distinção entre transfobia e fascismo.

Dito isso, há várias razões pelas quais não é possível localizar o feminismo no centro do antifascismo atual. Um deles é a ignorância. Acho que as pessoas não sabem que, historicamente, os fascistas sempre foram “anti feminino”, por assim dizer. Eles estavam construindo essa noção de virilidade, força, poder, heroísmo, de masculinidade heroica e abnegada. Portanto, a feminilidade sempre foi não apenas vista como fraca, mas também como aquela que se recusa a se sacrificar porque tem, por exemplo, outras pessoas para cuidar. Historicamente, isso sempre esteve muito presente no fascismo.

Um segundo motivo é que o patriarcado é uma estrutura de poder muito forte. Basicamente, ele existe há séculos e não desistirá facilmente. Portanto, com todos os esforços que temos feito, você, eu e milhões de outras mulheres, para construir um conhecimento diferente, uma sociedade diferente, regras diferentes e igualitárias, no sentido de realizar uma sociedade baseada na solidariedade e no respeito, até mesmo no reconhecimento, ainda estamos vivendo em uma sociedade patriarcal. Os acadêmicos e ativistas antifascistas estão de alguma forma permeados pela ideologia patriarcal de exclusão das mulheres.

Em terceiro lugar, não revisamos a ciência o suficiente. Portanto, as mulheres acadêmicas, por mais que já tenham de lutar para se tornarem acadêmicas basicamente — e estou dizendo algo muito óbvio aqui, mas que de alguma forma parece não ser reconhecido –, as acadêmicas e as feministas têm sido marginalizadas.

Nessas abordagens científicas do fascismo, nossa perspectiva tem sido negligenciada porque não somos a parte hegemônica. Se Slavoj Žižek começar a falar sobre o feminismo como sendo o cerne do antifascismo, talvez cheguemos a algum lugar, mas até que as feministas ocupem uma posição central no discurso de esquerda, seremos, no máximo, educadamente convidadas a dizer algo de vez em quando.

Há essa experiência de ser uma acadêmica, ativista ou política feminista e, às vezes, ouvir: “Ok, você tem cinco minutos e, por favor, conte-nos tudo sobre o que é o feminismo”. E você pensa: “Como isso é possível?” A onipresença da exclusão patriarcal da perspectiva feminista, das mulheres, das pessoas trans que se identificam como mulheres, de qualquer pessoa que se identifique como mulher, também está muito presente nas ciências. Portanto, não se trata apenas da história em si, mas também da história da ciência.

O quarto motivo é que as revoluções na ciência exigem muito esforço. Elas não acontecem da noite para o dia. Acho que nas Ciências Sociais, nas Humanidades, temos que fazer esse esforço. E é um esforço enorme. Sinceramente, há quatro ou cinco anos, quando eu conversava com pessoas de estudos fascistas ou quando estava na conferência antifascista em Varsóvia, organizada por meus ex-alunos da Academia Polonesa de Ciências, que são acadêmicos fantásticos, quando eu dizia a eles que o feminismo está no centro do que vocês estão fazendo, eles respondiam “não”. E também diziam: “O fascismo é histórico, nunca mais acontecerá”. E três anos depois, eles voltam e dizem: “Meu Deus, o fascismo está aqui, e temos de ser feministas”. Basicamente, há uma resistência em todos os lugares ao fato básico de que o feminismo está no centro do antifascismo contemporâneo.

E agora sobre o “outro lado”, por que você acha que o discurso em torno da família heteronormativa, composta por um homem cisgênero, uma mulher cisgênero e filhos biológicos, ainda é tão central para os grupos e políticos de extrema direita? E por que ele ainda é tão eficaz na mobilização da sociedade atual?

Acho que a maioria das pessoas reage às mudanças com medo. Isso é muito bem representado no tarô: temos essa carta maravilhosa, a torre, e recomendo fortemente que todos a vejam porque é incrível. Ela representa uma torre que está tremendo, há um trovão atingindo a torre e, em seguida, pessoas literalmente caindo da torre. Muitas pessoas pensam que, quando essa carta é puxada, é uma previsão de um colapso, mas não é. O que essa carta representa são os piores medos que a humanidade tem em relação a mudanças repentinas.

Portanto, quando eu tiro essa carta de tarô aqui, estou tentando mostrar a imagem da evolução humana e das revoluções. É por isso que as pessoas têm medo da revolução, porque pensam “que diabos, o mundo inteiro, como o conhecemos, vai entrar em colapso”. E a ideia feminista é profundamente revolucionária, e inclui uma revisão da estrutura familiar.

Não acho que as feministas querem genuinamente que todos vivam da mesma maneira. Acho que a maioria concordaria que a humanidade é bastante diversificada. Eu gostaria de ter uma família com meus vizinhos, por exemplo. É um tópico do meu doutorado. Decidi escrever sobre as noções de família na filosofia social porque vi que somente pessoas conservadoras estavam brincando com essa noção.

Basicamente, a maioria dos acadêmicos e filósofos políticos desde a antiguidade nunca pesquisou as famílias. Mas eles têm essa imagem de, por exemplo, “pater familias” como estrutura, pais, filhos, idosos, escravos. A família em Aristóteles fala em “ferramentas” , mas as ferramentas são humanos que são privados de autonomia e reconhecimento, escravos.

Desculpe-me por ser brutal, mas, infelizmente, a história da Filosofia, assim como a história da humanidade, não é agradável. Temos sido uma espécie muito atroz, de fato. Então, as noções de família na Filosofia Política, desde as ideias de direita até as de esquerda, são muito conservadoras.

Esse é um grande apelo para os acadêmicos progressistas: não sejam conservadores, revisem as noções de privacidade e família.

As práticas sociais enlouqueceram com a diversidade de modelos de família, com a forma como mudamos nossa privacidade, intimidade, sexualidade, como compartilhamos ou não, como construímos estruturas temporárias ou de longo prazo pra tudo isso. Isso já é muito diversificado.

Então, quando perguntamos por que e como a noção de família tem tanta força e potencial para ser mobilizada de forma defensiva contra feministas e gays, estudos de gênero e tudo o mais, acho que um dos motivos é que as pessoas têm medo de mudanças. O segundo motivo é que os teóricos realmente não divulgaram o fato de que nossa espécie mudou e que nossas famílias mudaram muito.

A maior parte da sociedade tem essa imagem de um tipo de família monogâmica do século 19, uma família nuclear, enquanto a maioria da sociedade já está fazendo algo muito diferente.

Na Polônia, os jovens dizem que os valores familiares são os mais importantes que possuem. A Sociologia polonesa sempre interpretou isso como conservadorismo, mas as pessoas que cresceram durante a transformação neoliberal viram as instituições estatais entrarem em colapso.

Elas viram empresas e outros locais de trabalho entrarem em colapso e acabar com qualquer medida de seguridade social. Para as pessoas que cresceram nas décadas de 1990 e 2000, a família foi a única entidade que permaneceu. Quando lhes perguntavam: “o que é mais importante para você?” É claro que elas diriam que é a família, porque essa era a única estrutura que ainda existia, enquanto o local de trabalho se fechava e demitia os trabalhadores, enquanto o Estado cancelava as aposentadorias e fazia todo tipo de outras coisas atrozes que faziam as pessoas passarem fome.

É claro que, quando as pessoas veem que a família está sobrevivendo a esse cataclismo, elas dizem “sim, queremos a família, porque essa é a única coisa que vimos ser solidária e existir, não desaparecer nesse momento difícil”.

Eu teria uma interpretação muito progressista dessa questão sociológica, por exemplo, mas ninguém está interessado porque a família não é interessante, ou se você estuda a família, você é um conservador.

Falando sobre resistência e contra estratégias. É claro que lutamos contra o Patriarcado por toda a nossa vida, porque estar vivo é resistir e, como mulheres ou pessoas LGBTQIAP+, não temos descanso dessa luta. Mas você tem olhado com esperança pra algum movimento ou ação em especial?

Acho que a greve internacional de mulheres e todos os grupos e mobilizações feministas que vêm protestando desde 2016, pelo menos, são exatamente o tipo de mobilização que eu destacaria. As mobilizações #MeToo também foram muito importantes. De alguma forma, elas estavam acontecendo em paralelo e agora estão sendo consideradas ineficazes, ou perdedoras, ou algo assim, mas não acho que seja assim. Acho que sua influência vai muito além dos processos jurídicos.

Eu mencionaria também pequenos grupos de ativistas, como o Atlas Nienawiści, na Polônia, ou o Sea Watch, no Mediterrâneo, talvez não sejam grandes grupos propriamente ditos, mas eu diria que eles estão fazendo um grande ativismo. Os ativistas na fronteira polonesa-bielorrussa estão constantemente tentando sustentar a vida de pessoas que são basicamente empurradas para dentro e para fora da Polônia, às vezes 16 vezes ou mais, por meio de uma fronteira que foi militarizada a um ponto inimaginável neste momento.

Acho muito interessante o fato de que, de alguma forma, as pessoas estão tendo todos os tipos de ideias sobre como lutar. Além disso, crianças polonesas de sete, oito anos de idade ou algo assim dizem aos pais ou professores que são não binárias, ou queer, ou gays, ou lésbicas, ou trans, ou que não estão dispostas a serem chamadas de menino ou menina, ou a serem classificadas de acordo com o gênero.

No idioma polonês, não se mudam apenas os pronomes, mas toda a frase, porque a maioria das palavras em uma frase sobre uma pessoa tem um gênero. Portanto, não se trata apenas de pronomes, mas de adjetivos, verbos, tudo.

É uma revolução realmente grande na linguagem. Temos uma enorme revolução sexual e de gênero vinda das camadas mais jovens da população, que simplesmente não estão felizes em pertencer a essa coalizão maligna, fascista, conservadora, feia, exclusiva e cruel. Eles escolhem o arco-íris, seja qual for a forma.

Há também versões mais organizadas de ativismo. ONGs e políticos que estão tentando mudar as coisas dentro de seus partidos políticos. Temos um político que entrou no parlamento pelo partido liberal, mas sempre foi um ativista local.

Ele era como um coelho, correndo por um prado tentando levar água e alimentos para os refugiados que estavam basicamente no meio do nada e ninguém conseguia chegar até eles. Seu próprio partido político o estava perseguindo.

Há também indivíduos que estão tentando fazer esse tipo de desobediência corajosa, como eu diria, ou resistência. Todos os tipos de estruturas, movimentos e mobilizações estão acontecendo. Eu diria que minha perspectiva sempre foi transversal e muito aberta à possibilidade de que minha opção favorita de posição política não seja a única.

Acredito que, nesse tipo de mobilização maciça, eficaz e, infelizmente, bem-sucedida da ala direita, temos que realmente nos afastar do nosso radicalismo, talvez não do radicalismo, mas do nosso sectarismo, definitivamente. Acho que esse é o principal aspecto.

O Alter-Globalization foi realmente bom, um movimento que foi rapidamente apagado da memória social e política, e por boas razões, mas foi eficaz. Um dos princípios era sair da sua zona de conforto, também politicamente, e conseguir formar alianças em escala internacional entre feministas ultra-queer de São Francisco e agricultores bastante conservadores da Índia, por exemplo.

Como o capital é global, os movimentos sociais que se opõem ao extrativismo e aos abusos de todos os tipos devem ser capazes de construir alianças sintéticas e fluídas. Acredito que essa capacidade de se afastar de nosso pensamento sectário e divisivo é importante, mas também o é a capacidade de se mobilizar e manter a mobilização mesmo nos momentos em que pensamos que tudo está resolvido.

Acho que seremos muito mais pessimistas daqui a dois ou três anos. A situação não está melhorando. Acho que está piorando de muitas maneiras e em muitos lugares. Podemos enfrentar perigos que não imaginamos por causa da emergência climática, por causa de guerras, por causa de todos os tipos de conflitos, e os fundamentalistas também podem se tornar ainda mais ativos. Portanto, acho que a capacidade de manter os vínculos, as conexões, as relações que temos, de permanecer na luta juntos, é importante. E as pessoas fazem isso de muitas maneiras diferentes.

Tenho alguns movimentos dos quais lhe dei nomes, mas basicamente o que me interessa não é tanto quem eles são, mas sua ontologia, seu pertencimento. Na verdade, não me importa se eles são suficientemente radicais de esquerda ou não, e acredito que essa despreocupação é necessária hoje, porque não sabemos quando precisaremos de um ministro para bloquear algumas leis e talvez precisemos dessas pessoas também. Portanto, por mais que sejamos anti autoritários, anti governo, anti Estado, talvez queiramos que alguém em um cargo bem alto tome certas decisões em favor dos oprimidos.

Mostrar nossa bunda para o governo, essa política acabou. Acho que ela não funciona mais. Podemos fazer coisas contra as instituições. Podemos ocupar lugares. Podemos enfrentar as estruturas estatais de todas as formas. Devemos criticá-las porque muitas vezes elas não funcionam muito bem.

Mas acho que estou muito mais interessada em como ocupamos e no modo transversal de atravessar distinções e tentar encontrar estratégias sustentáveis de longo prazo, alianças e assim por diante.

Então, dentro dessas alianças de longo prazo, podemos ter esses momentos explosivos. Podemos ter grupos de mobilizações que se casam com uma causa muito específica e depois desaparecem, ou que têm uma estratégia muito radical por um momento.

E é também nesse ponto que acho que nosso antifascismo tem de ser feminista, porque precisamos entender que não é heroico, não é esse cavaleiro em um cavalo branco que vai nos salvar. Não estamos recebendo nenhum tipo de messias. Na verdade, estamos condenados a ser colaborativos, a manter nossas estruturas, a não apagar tudo só porque alguém disse algo de que não gostamos.

Aqui, estou seguindo Antonio Negri e outras pessoas que têm sido muito cuidadosas com relação a como não devemos nos distanciar das mudanças sociais e como devemos ser capazes não de assisti-las, mas talvez de aprender com elas. Em minha opinião, fazemos isso para garantir que nossas ideias, nossa compreensão das resistências e dos processos sociais trabalhem em conjunto com o movimento, e não contra ou sem ele, porque, nesse caso, nós o mapearemos de forma errada ou o definiremos incorretamente ou o entenderemos mal.

Isso também é o que o Movimento Feminista Chicano têm feito diretamente, aprendendo com a experiência do legado feminista negro, ou seja, com as experiências das mulheres negras e como essas experiências podem de fato se traduzir em um melhor conhecimento da sociedade.

*Essa entrevista foi publicada originalmente em inglês, para o International Research Group on Authoritarianism and Counter Strategies (IRGAC) da Fundação Rosa Luxemburgo de Berlim.

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