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Andrea Dip

Jornalista investigativa e estudante de psicanálise. Autora do livro-reportagem “Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder". É pesquisadora na Freie Universität de Berlim e apresenta o podcast Pauta Pública na Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

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Nikolas Ferreira e Eduardo Girão participam de encontro de extrema direita em Madrid

Saiba como foi VI Transatlantic Summit, que teve ânimo elevado com eleição de Trump e discursos conspiratórios
04/12/2024 | 05h00

“Ontem jantamos com Nikolas Ferreira e ele ligou para Bolsonaro! Não sei o que ele falou porque não entendo o português dele, mas foi incrível! Nikolas simplesmente pegou o telefone e ligou! Você imagina? As duas pessoas mais importantes do Brasil são Bolsonaro e Neymar e uma delas estava falando com a gente”. Ouvi essa conversa por acaso enquanto ajeitava meu disfarce de mulher conservadora no banheiro do Senado da Espanha, em Madrid, nesta segunda-feira.

O diálogo aconteceu em espanhol, entre duas participantes do VI Transatlantic Summit, conferência anual realizada pela organização Political Network for Values ​​(PNfV), uma plataforma ultraconservadora que conecta políticos e ativistas de extrema direita da Europa, América Latina, EUA e África, cujo presidente atual é José Antonio Kast — fundador e líder do Partido Republicano chileno, conhecido por suas ideias ultraconservadoras e defensor do legado de Augusto Pinochet.

Durante um dia inteiro, parlamentares, ministros, ativistas e representantes de organizações ultraconservadoras da América Latina, Europa, Estados Unidos e África se reuniram no belo prédio do Senado da Espanha para fazer networking, pensar projetos de leis, trocar experiências bem sucedidas e traçar estratégias de combate à esquerda e ao que a extrema direita chama de cultura “Woke”* (que foi ressignificada e tem sido usada de forma pejorativa pelos conservadores para denominar uma agenda “globalista” feminista, pró-aborto, antirracista, pró LGBT+, socialista, indigenista, etc.).

Muito se falou sobre como os valores cristãos devem embasar as políticas públicas, sobre a importância de lutar pela “vida desde a concepção até a morte natural” — o que significa sobretudo proibir o aborto em qualquer circunstância — sobre como barrar direitos de pessoas trans, “um homem que nasce homem nunca pode ser uma mulher” e de casais homossexuais, sobre doutrinação comunista, guerra cultural, “cultura do cancelamento” e globalismo.

A ONU e o filantropo George Soros, fundador da organização Open Society, também continuam sendo vistos como inimigos.

Nem a emergência climática escapou aos discursos negacionistas da conferência: “A esquerda fica falando sobre ambientalismo como se nós humanos fôssemos intrusos em nosso próprio planeta” diria um dos palestrantes.

Outro assunto que passou por todas as mesas de discussão foi a eleição de Trump, festejada pelos presentes como um momento de vitória não apenas para os Estados Unidos mas para os conservadores do mundo todo. Convidados repetiam que o novo presidente não tornaria apenas a América grande novamente (em alusão ao slogan nacionalista de Trump “make America great again”) Mas também a Europa.

Para acessar o evento, o participante deveria ter nome em uma lista (não era possível se credenciar ou comprar ingresso), passar por dois níveis de segurança policial, longa checagem de passaporte e mais o controle da organização do evento. Foi de longe o evento mais difícil de entrar desde que comecei a me infiltrar nesses congressos ultraconservadores na Europa.

Talvez por ter sido no Senado Espanhol ou porque alguns movimentos sociais madrilenhos tenham tentado fazer pressão para que o evento fosse cancelado, o que foi amplamente mencionado pelos palestrantes como uma tentativa de calar as vozes da verdade.

Entre os palestrantes havia dois brasileiros: o senador do novo Eduardo Girão (citado duas vezes no relatório da PF sobre o plano do golpe) e o deputado federal Bolsonarista Nikolas Ferreira (PL).

Girão participou da mesa “Liberdade de expressão e liberdade religiosa, pilares da democracia”. Misturando espanhol e português, Girão baseou seu discurso principalmente em acusações contra o STF.

Começou sua fala afirmando que o Brasil vive hoje uma “ditadura comandada por uma juristocracia” e que o Supremo Tribunal Federal atua de forma partidária como oposição a Bolsonaro e em favor de Lula.

Ele disse que o “tribunal não está apenas desmantelando nossas instituições democráticas, mas também devastando inúmeras famílias” e que “mais de 2.000 presos políticos foram detidos em circunstâncias arbitrárias, negando-lhes o devido processo legal, a individualização e a proporcionalidade das sentenças”.

Girão também lamentou que “enquanto o mundo celebra o Brasil por seu samba, seu futebol, sua alegria, sua hospitalidade, a verdade é que os brasileiros estão tristes, perdendo cada vez mais a esperança. A maioria dos nossos cidadãos, cerca de 61% de acordo com uma pesquisa recente, agora tem medo de se expressar nas redes sociais por causa da possibilidade de represálias por parte dos poderosos” e salientou que “Enquanto isso, agendas destrutivas como a promoção do aborto e a legalização das drogas não correm o risco de serem aprovadas pelo congresso, mas o Supremo Tribunal Federal age para liberá-las”.

O senador também fez um apelo, que chamou de “grito de socorro” aos colegas para que fosse feita pressão internacional para que a “democracia fosse restaurada” no Brasil. Por fim mencionou que o país está em uma “constante guerra espiritual”.

Representando a juventude do Political Network for Values pela segunda vez — a organização oferece longos treinamentos políticos para jovens e adolescentes — Nikolas Ferreira foi mais vago em seu discurso.

Falou sobre a importância da família cristã e sobre como os direitos humanos naturais estão sendo deturpados e manipulados por regimes comunistas para gerar opressão e que a falta de moralidade cria líderes “medíocres e incapazes de lidar com problemas reais”.

Nikolas mencionou rapidamente que “prisões ilegais e ditadura judicial, censura e perseguição de opositores são as dores que o Brasil está sentindo neste momento” mas que ele é brasileiro e não desiste nunca.

“Como você vai derrotar o aborto? Não apenas defendendo a vida, mas criando vida. Como vai derrotar o feminismo? Ensinando nossos filhos e filhas a serem virtuosos. Como vai derrotar a ideologia de gênero? Com educação em casa. Famílias fortes, nação forte. Precisamos mostrar ao mundo que ser conservador e ter uma família é muito melhor do que a vida artificial e vazia que a esquerda vende como se fosse um sucesso”.

Financiamento

Vários dos grupos que patrocinam os encontros do PNfV já foram designados como grupos de ódio anti-LGBTQIA+ de acordo com análise da Ipas, organização internacional sobre direitos sexuais e reprodutivos. Entre os grupos de ódio estão Family Watch International, Alliance Defending Freedom (ADF), The Center for Family and Human Rights e a International Organisation for the Family, que organiza o World Congress of Families.

Outros patrocinadores recorrentes são a Heritage Foundation, um think tank dos EUA próximo do Partido Republicano que dá ares à islamofobia, retórica e políticas anti-imigrantes e anti-refugiados, e o Center for Fundamental Rights, que é intimamente ligado ao governo de extrema direita húngaro.

O PNfV foi lançado por ultraconservadores espanhóis e mexicanos em 2014. Vários de seus principais oficiais ou afiliados foram identificados como membros do grupo paramilitar anticomunista secreto El Yunque, fundado no México na década de 1950. Entre eles estariam sua diretora-executiva, Lola Velarde, e o secretário-geral e vice-presidente, Rodrigo Iván Cortés.

Em agosto de 2021, foi revelado pela ‘Intolerance Network’ do WikiLeaks que o PNfV teve um orçamento de $ 68.000 em 2014, seu primeiro ano de operação, a maior parte do qual foi gasto na cúpula daquele ano em Nova Iorque. O seguinte encontro, realizado em 2017 no Parlamento Europeu em Bruxelas, teve um orçamento de € 110.550.

O evento promovido pela organização Political Network for Values, é um exemplo importante de como a extrema direita tem se articulado e construído redes transnacionais na Europa e na América Latina.

Os eventos reúnem políticos, influenciadores, líderes religiosos e ativistas ultraconservadores com o objetivo de criar uma agenda comum e, em seguida, tentar transformá-la em política pública e fazer campanha localmente.

*O termo WOKE foi originalmente cunhado pelo movimento negro americano e usado em movimentos de justiça racial no início e em meados de 1900. Ser “woke” politicamente significava que alguém estava informado, educado e consciente da injustiça social e da desigualdade racial, afirma o Merriam-Webster Dictionary. Um de seus primeiros usos foi em uma gravação histórica da música de protesto “Scottsboro Boys”, do Lead Belly. Naquela gravação, foi usado como um termo sobre estar ciente do potencial de violência racista como uma pessoa negra nos Estados Unidos.

O termo, em um de seus significados contemporâneos, começou a ganhar mais popularidade no início do movimento Black Lives Matter em 2014, de acordo com o Merriam-Webster Dictionary.

O termo foi escolhido por alguns republicanos americanos como um termo pejorativo  para significar as questões de justiça social baseadas em identidade que alguns democratas e progressistas defendem, representantes da Democratic Governors Association e do Working Families Party. O termo “Woke” foi usado pelo ex-presidente Donald Trump, pelo governador da Flórida, Ron DeSantis, e por vários candidatos apoiados por Trump para as eleições de meio de mandato, incluindo Kari Lake e Mehmet Oz.

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