ICL Notícias
Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

O assassinato da memória

Chico Mendes vive!
29/02/2024 | 05h01

Francisco Alves Mendes Filho — Chico Mendes

O Brasil é um lugar que humilha todos os dias a expressão “já vi tudo que pra ver havia”. Na última do surrealismo sádico nacional, Darci Alves Pereira, assassino confesso do ambientalista Chico Mendes, morto em 1988, foi empossado presidente do Partido Liberal (PL), na cidade paraense de Medicilândia. O horror tomou conta da internet e, após a denúncia da mídia e a repercussão negativa, Darci mal esquentou a cadeira por dois dias e foi destituído do cargo. Não importa. A tentativa de matar a memória já estava feita.

Morte de Chico Mendes

O Brasil também é o lugar do “ninguém sabe, ninguém viu”. Misteriosamente, o presidente nacional do partido, Valdemar da Costa Neto — assim como dirigentes locais —, disse que não fazia ideia de que Darci era o matador que desferiu 42 tiros de uma espingarda calibre 20 (repito, quarenta e dois tiros no peito), que aniquilaram o ambientalista nos fundos de sua casa, quando saía para tomar banho.

O Brasil pode igualmente ser o lugar do “bandido bom é bandido morto”, desde que ele não seja branco e com os contatos certos. Darci, no ano da promulgação da Constituição Cidadã, era um jovem que sujou as mãos de sangue a mando do pai, Darly Alves, grileiro de terras na região.

Chico sabia que estava marcado para morrer. Quatro dias antes de perder a vida ele procurou o Jornal do Brasil, uma das grandes publicações da época, para denunciar as ameaças. O jornal decidiu não publicar a entrevista, porque a direção considerou que o grande público não o conhecia e também que ele levava a questão ambiental demais para o terreno da politização. Depois de sua morte, publicaram a última entrevista de Chico Mendes com muito destaque, seguida de um incomum editorial na primeira página.

Paul McCartney lançou a faixa “How Many People”, em homenagem ao seringueiro, no álbum “Flowers in the Dirt”, em 1989. A HBO transmitiu o premiado telefilme “The Burning Season”, que narrava as lutas do seringueiro. O ator Raúl Juliá interpretou Chico Mendes. Uma enxurrada de homenagens de artistas do mundo inteiro fez o desaparecimento brutal de Chico Mendes repercutir tanto no Brasil e no exterior que dificilmente quem viveu aquela época esquece.

A pressão foi tanta que num resultado surpreendente e inédito, ambos foram condenados a 19 anos de prisão em 1990, mas fugiram da cadeia em 93. Darly, escondido no interior do Pará com nome falso, até financiamento público pelo Banco da Amazônia conseguiu nos três anos como fugitivo. Em 1996, o filho foi capturado em junho e o pai, em novembro. A falsidade ideológica garantiu a Darly mais dois anos e oito meses de gancho.

(In) justiça no Brasil

O Brasil é a nação que, propositalmente, não “liga o nome à pessoa”, “não faz o lé com o cré”, pois quem fez um ensino médio mediano sabe que a borracha foi um grande ciclo extrativista a sustentar a economia nacional e que o trabalho num seringal pode arrasar não apenas o seringueiro mas também o meio ambiente.

Chico Mendes lutava por uma reforma agrária que garantisse geração de renda sem a devastação da floresta. Um discurso com ideias mais que atuais. Ele falava em sustentabilidade, algo que causa calafrios em uma elite agrária retrógrada e gananciosa ao ponto do crime. Qualquer crime.

O Brasil também é um lugar que vive “a cada dia a sua agonia”. E como são tantas as suas agruras imediatas, ele se dá ao luxo de esquecer o inesquecível, e quase sempre consegue anistiar seus mais terríveis algozes.

É um país que faz questão de assassinar a memória desde priscas eras, como fez com escravocratas, invasores, estupradores, ditadores de golpes militares, assassinos confessos e inconfessos que erguem suas fortunas rejuntando com sangue. E ao anistiar, “perdoar” e não punir estes, mata uma e outra e outra vez aqueles. Mata repetidamente Chico Mendes, Dorothy Stang, Mãe Bernadete, lideranças indígenas sem conta… nos mata sumariamente e a conta-gotas.

O Brasil é um lugar capaz de batizar uma cidade com o nome de “Medicilândia”, em uma homenagem ao general Emílio Garrastazu Médici, o presidente da fase mais sangrenta da ditadura iniciada em 1964. Uma ditadura que realizou obras super faturadas, catastróficas e inoperantes na região amazônica.

O tempo passa e a foto de campanha de Darci Alves hoje mostra um homem muito distante daquele jovem esguio e de cabelos volumosos que empunhou um cano longo para tocaiar alguém desarmado e indefeso. Ele hoje é um senhor idoso, branco, com rosto amigável em roupas comportadas. Um religioso. A cara para quem o Brasil dá emprego, abre as portas, convida para jantar.  Caso saia armado de faca e agrida alguém, Darci tem a cara de quem confraternizará sorrindo com a polícia.

Darci Alves Pereira e seus clones só não contam que, mesmo no território capaz de tudo o que foi dito até aqui, ainda exista quem lembre. Ainda exista quem lute, acredite e não admita esquecer.

Chico Mendes, presente!

Deixe um comentário

Mais Lidas

Assine nossa newsletter
Receba nossos informativos diretamente em seu e-mail