Aceita. Uma única palavra foi capaz de acordar a fera faminta, que está sempre à espreita de todas as nações criadas para acreditar que tudo o que vem do pertencimento negro é o “outro bizarro” a ser subjugado e eliminado.
Uma palavra, poucas imagens e a cantora Anitta levantou outra vez a fervura de uma sociedade cindida pelo estrago feito por uma colonização inventora de demônios para se dizer superior e autorizada a matar literal e simbolicamente.
Há muito, muito e ainda mais para dizer sobre um país todinho erguido no braço preto e indígena, mas de cabeça baixa para as invencionices de uma também inventada superioridade espiritual branca.
Alguns se dirão tristes com a realidade racista brasileira que se revela a cada dia, a cada novo episódio, inquestionável. Outros dirão que só há espaço para a raiva extrema e têm motivos muito concretos para isto.
É muito terreiro invadido, ofensa proferida, gente ferida e morta ao longo da história pelo racismo religioso nacional. Intelectuais e influencers nas redes sociais apontaram, corretamente, que pior que perder centenas de milhares de seguidores na internet é perder a vida e o direito de professar a própria fé livremente.
No entanto, é justamente por isso, pelo fato de que se dizer praticante de qualquer fé com raízes fincadas na África ainda pode significar a morte em pleno 2024, que alguém que ganhou fama e dinheiro na era das redes, mas afirmar este pertencimento é digno de nota por não temer os fundamentalistas.
A guerra santa que nos inferniza há dois milênios e o Brasil há cinco séculos, agora conta com templários ridículos, mas não por isso menos cruéis, cavalgando algoritmos. Perder gente odiadora e potencial agressora não é perda, é ganho de saúde mental e livramento. É ganho de qualidade de vida e liberdade.
É Pan porque é múltiplo. Tudo se interliga
Em meio a essas terríveis disputas, uma notícia salta: o Benin, país do oeste africano e de onde saiu muita gente para as bandas de cá, anuncia um projeto para dar cidadania aos que tiveram antepassados saídos de lá.
É mais um entre muitos sinais do renascimento do Pan-africanismo, movimento criado no contexto das lutas por independência de países africanos entre os séculos 19 e 20, e que convoca pessoas negras africanas e na diáspora a se unirem contra esse mesmo ódio histórico capaz de excluir, matar e demonizar uma fé, uma artista e uma música em pleno século 21, mas principalmente de alijar milhões de seres humanos do direito à vida digna.
Em outra ponta da questão racial no mundo, o Reino Unido, esta parte do planeta que encabeçou o mercantilismo usando sua garra escravizadora e arruinadora de nações inteiras, inventou agora uma lei que pretende enviar para Ruanda imigrantes africanos que por lá apareçam ilegalmente.
Ruanda… o cenário de um genocídio incentivado pela França (admitido pelo próprio estado francês) em 1994 e que fez o grupo Hutu eliminar em 100 dias, um milhão de pessoas do grupo Tútsi.
Não estudar tem nos custado como povo o falso sossego da ignorância e a tolerância diante do inaceitável, porém o mais grave é a desconexão com uma história que possui uma dor extremada, mas também infinitas belezas.
Este mês tive a honra de entrevistar Scholastique Mukasonga, uma Tútsi última sobrevivente da sua família. Li a sua trilogia — “Baratas”, “A mulher dos pés descalços” e “Nossa Senhora do Nilo” — com o estômago na boca.
Impossível controlar a emoção diante de alguém que foi a única que sobreviveu para contar às gerações futuras e ao mundo toda aquela selvageria… e contou. Não com a frieza jornalística, mas com a prosa poética e a vida pulsante que só a criação literária tem.
Scholastique esteve por aqui lançando seu novo livro, “Kibogo subiu ao céu” que fala sobre sincretismo religioso e como a fé original do seu povo foi sufocada pelo cristianismo.
Ela teve toda a sua família fuzilada dentro de uma igreja cristã. Uma história tão tenebrosa que me paralisou e não me deixou dizer que há muito me orgulho de tudo o que possuo de raiz africana.
Madame Mukasonga me olhou e disse que andava me observando, querendo saber de qual lugar do continente africano eu vinha. Contei que sei por histórias orais e por dois exames de DNA que sou majoritariamente Nigéria e, vejam só, Benin.
Brinquei dizendo que já podia requerer meu passaporte. Ela apenas abriu um sorriso gigante e os braços para dizer: “Bem-vinda de volta, minha querida”.
Ruanda, Benin, Brasil… Aceita!
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