ICL Notícias
País

Drama das crianças exiladas durante a ditadura militar é contado em livro

Obra revive memórias de 46 brasileiros forçados a viver longe do Brasil por causa do regime militar
22/03/2025 | 17h00

Por Laura Kotscho

O Oscar que premiou o filme ‘Ainda Estou Aqui’, somado ao número redondo dos 40 anos do início da redemocratização, colocou novamente em perspectiva os horrores provocados pela Ditadura Civil-Militar, que durou de 1964 a 1985 no país.

O regime foi responsável por inúmeros ataques aos direitos humanos. Um dos aspectos cruéis desse período foi obrigar crianças, filhos de militantes políticos, a viverem longe do Brasil.

É o que narra o livro “Crianças e exílio: memórias de infâncias marcadas pela ditadura militar” (Carta Editora 2025), lançado na terça-feira (18). A obra reúne depoimentos inéditos de 46 pessoas que passaram por este trauma na infância, vivendo em países como Cuba, Chile, Guiné Bissau, Uruguai, entre outros.

Para a professora universitária Nadejda Marques, autora e organizadora da obra, “o livro serve para desmistificar e desromantizar a ideia do exílio”. Nadejda saiu exilada do Brasil para o Chile, em 1973, quando tinha apenas 15 meses.

Com o golpe militar no Chile, que alçou Augusto Pinochet à Presidência do país, ela precisou de uma nova guinada na vida. Foi refugiada política na Suécia e, logo depois, se mudou para Cuba. A professora só voltaria para o Brasil em 1979, com a aprovação da Anistia ampla, geral e irrestrita. “O exílio foi uma punição, uma violência contra as crianças e suas famílias”, completa.

DITADURA LIVRO CRIANÇAS EXÍLIO

Nadejda Marques, com a mãe, no Hotel Presidente, Havana, Cuba, 1974. / Foto: Acervo Pessoal

A ideia do livro partiu da professora de matemática Helena Dória. Durante encontros do Projeto Clínicas do Testemunho, Helena começou a procurar crianças que também tinham sido forçadas ao exílio. “Encontrando essas crianças daquele tempo, surgiu a ideia de reuni-las em um livro. Há filmes e documentários, há uma produção literária robusta, mas do ponto de vista de adultos. Em outubro de 2023 criamos o grupo ‘Crianças e Exílio'”, comenta.

“Começamos um processo de resgate de memórias. Conseguimos encontrar 67 pessoas, das quais 46 conseguiram escrever para o livro.  Os colegas que não conseguiram escrever é porque a experiência ainda é muito traumática.”, complementa Nadejda. “Podemos dizer que as histórias são uma amostra. Há ainda muitas e muitas histórias ainda por serem contadas”, finaliza.

Livro conta o drama das crianças exiladas na ditadura

Livro conta o drama das crianças exiladas na ditadura

Ditadura me fez estrangeira

Helena Dória teve que deixar o Brasil no natal de 1972. “Minha mãe disse ‘Papai Noel sabe que vamos para o Chile. Ele mandou os presentes para lá. Convenceu-nos.”

O pai de Helena, Antônio Lucas de Oliveira, havia sido preso em agosto de 1971. Desde então, sua casa passou a ser vigiada: “Na rua, sempre carros estacionados; na praça em frente, sempre namorados nos bancos e homens fazendo exercícios físicos”, relata.

Mas a estadia no Chile durou pouco tempo. Em 1974, Helena e sua família se mudaram para Cuba, onde viveram por mais 4 anos. Em 1980, mesmo com a Anistia no Brasil, seus pais não se sentiam seguros em voltar para a terra natal. Se inscreveram no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e foram trabalhar na Guiné-Bissau.

“Na Guiné-Bissau, o Brasil ficou mais perto. Chegavam revistas, livros e convivíamos com brasileiros não exiladas, que contavam sobre a vida no Brasil. No entanto, viver em Bissau foi a parte mais difícil do exílio. Foi solidão”, recorda Helena. O período no país africano durou apenas 3 anos.

De volta ao Brasil, Helena recorda que retomou o convívio com a família. “Como era e é bom chamar alguém de tio, tia, prima, vó, vô. Perdemos nossa avó e avô maternos quando estávamos fora, mas conseguimos conviver um pouco com os paternos. Aprendi partes da história, da geografia, da literatura de meu próprio país para o vestibular. Continuo tendo que esforçar-me para saber mais.”

Mesmo de volta à terra natal, a década no exílio marcou para sempre a vida de Helena, que passou a se sentir estrangeira em seu país. “O sentir-se diferente é permanente. O não criar raízes nos lugares me caracteriza. O exílio me constitui. É um modo de viver difícil. Eu me exilo no meu próprio país, na minha pátria.”, reflete.

CRIANÇAS DITADURA EXÍLIO LIVRO

A professora da Ufrgs, Helena Dória Lucas de Oliveira, uma das organizadoras do livro, (no alto à direita), com familiares, em frente à casa da rua Eduardo Mondlane, Guiné- Bissau, o último endereço do exílio, entre 1982-1983 / Foto: Acervo Pessoal

Infância “esquecida para sempre”

Marcia Curi Vaz Galvão não nasceu no Brasil. Filha do exilado Araken Vaz Galvão, considerado “desertor” pelo exército brasileiro, e da uruguaia Gladys Celina Curi Bermudez, Márcia nasceu em Montevidéu em 1971. Mesmo assim, ela não fugiu da sina do exílio.

Na obra, ela narra: “Logo após seu nascimento, quando você tinha apenas 1 ano e 3 meses, numa madrugada fria de junho em Montevideo, militares foram no nosso apartamento e decidiram que a nossa mãe tinha que ir morar com eles por um tempo. Depois disso, nossa mãe foi embora com os militares e só voltou alguns anos mais tarde. Era o início de um inverno que duraria quase 4 anos”.

Gladys Celina foi presa por participar de reuniões do movimento de guerrilheiros “Libertación Nacional Tupamaros” contra a ditadura uruguaia. Com 5 anos, foi exilada de seu país natal e, junto com sua mãe, foi morar na Espanha. Depois viveu na Suécia e na França. Chegou ao Brasil só em 1979.

ditadura livro criança exílio

Marcia Curi Vaz Galvão, em 1977, aos 6 anos, no bosque Bois de Boulogne, em Paris / Foto: Acervo Pessoal

Recordar as memórias do exílio não foi uma tarefa fácil.”Muitas pessoas contam belas anedotas de suas infâncias, com uma riqueza de informações invejável, detalham aquela travessura memorável que ainda hoje faz rir boa parte da família. Esse tipo de experiência não encontra eco em mim. Pensar sobre esse emaranhado de desmemórias tem me feito considerar que essa velha infância teceu, a finas tramas, uma espécie de “para sempre”. Assim como os “Felizes para sempre” que ancoram os finais, minha infância foi, também, “esquecida para sempre”, lamenta Marcia.

Hoje, ela é atriz, professora de teatro e membra-fundadora do Grupo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça.

Mesmo com os traumas de recordar dos momentos, ela ressalta a importância de resgatar as memórias para que a história não se repita. “A crueldade daquele período de horror que assolou Nuestra América, nas décadas de 1960, 1970 e 1980 colhe frutos até hoje justamente pelo silenciamento, pelo medo que parece um bicho-papão incansável a perambular por nosso imaginário e pela raiva que marcou muitos de nós, crianças exiladas de suas infâncias e por negar a História tal qual ela aconteceu,” finaliza.

“Nunca quis voltar ao Brasil”

No Brasil da ditadura, Denise Oliveira Lucena não pôde ir à escola. Ela e seu irmão gêmeo, Adilson Oliveira Lucena, tiveram sua infância roubada pelos militares.

“Nossa infância foi relativamente tranquila até o Golpe de 64. Nossa mãe sempre nos ensinou em casa, pois fomos forçados à clandestinidade e isso nos impediu que frequentássemos a escola.[…] Em 1970, nosso pai foi brutalmente assassinado pela polícia da cidade. Senti muito medo e pensei que todos morreríamos alí.”, narra Denise.

Logo em seguida, a mãe de Denise, Damaris Oliveira Lucena, foi detida e levada pela OBAN (Operação Bandeirante). Ela e seu irmão foram transferidos para o juizado de menores, onde ficaram separados e tratados como terroristas. “Um certo dia, o capitão Mauricio Lopes foi nos buscar e nos levou no local onde minha mãe estava presa. Ela ficou tão assustada que gritava como uma louca pensando que seríamos torturados na frente dela. […] Fomos escoltados por um exército de policiais até o aeroporto onde rumamos para o México e depois para Cuba.”

A família chegou na ilha de Fidel Castro quando Denise tinha 10 anos. “Minha mãe foi hospitalizada, pois tinha sido muito torturada e precisou ser tratada para poder voltar à vida normal.”

Foi só em Cuba que ela e o irmão passaram a poder frequentar a escola.

“Era muito divertido estar com pessoas da nossa idade e tentar esquecer os fatos dolorosos do Brasil. Passeávamos, já que Havana era um lugar muito tranquilo. Adorava o ambiente estudantil, embora não fosse uma estudante dedicada”, recorda Denise.

“Nunca quis voltar ao Brasil. Não tinha afinidade com o país e muito menos com os parentes. Hoje tenho 63 anos e posso afirmar com toda certeza que os dez anos que estivemos em Cuba foram os mais felizes da minha vida. Eu precisava de tudo o que recebi para poder seguir em frente e voltar renovada”.

 

(A foto principal da matéria mostra as crianças Monica, Dario, a professora Lícia Maciel Hauer, e Kepler, acompanhadas pelo pai, Lycio Hauer, no parque de diversões Juegos Diana, em Santiago, Chile, 1972)

Relacionados

Carregar Comentários

Mais Lidas

Assine nossa newsletter
Receba nossos informativos diretamente em seu e-mail