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Lindener Pareto

Professor e historiador. Mestre e Doutor pela USP. Professor de História Contemporânea e Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). É apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação científica de História e historiografia nos canais do ICL.

O Sete de Setembro e o coração do Brasil

De muitas maneiras, o coração pesado, inchado e deformado de Dom Pedro é a síntese apodrecida do patriarcado brasileiro
07/09/2024 | 11h42

Em 2022, no auge da catástrofe fascio-bolsonarista e diante das comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil (1822–2022), um fato inusitado e fúnebre chamou a atenção de portugueses e brasileiros: o coração do Imperador Dom Pedro I (Pedro IV em Portugal) foi emprestado pelo governo de Portugal ao Brasil.

Nosso Imperador entre 1822 e 1831, Pedro I abdicou do trono do Brasil e retornou a Portugal. Numa guerra contra seu irmão Dom Miguel, Pedro venceu, mas gravemente adoecido acabou morrendo em 1834. Seu último desejo foi de que seu coração fosse levado à cidade do Porto. E assim foi feito, desde 1837 jaz num vidro de formol na Igreja de Nossa Senhora da Lapa, naquela bela cidade.

Pela primeira vez desde 1837, o coração do aventureiro imperador ficou exposto ao público. E mais do que isso, atravessou o Atlântico e retornou ao Brasil que ajudou a construir desde o grito do Ipiranga no dia 7 de setembro de 1822.

Não era a primeira vez que a mitologia da construção da nação e do nacionalismo brasileiro entrava em cena. Em 1972, na celebração dos 150 anos da nossa Independência, a Ditadura Militar brasileira, sob o governo do tenebroso Médici, trouxe os restos mortais de Dom Pedro para São Paulo, onde jaz até hoje na cripta do “Monumento à Independência”, no bairro do Ipiranga.

Por algum tempo, seu coração se reencontrou com o Brasil de ontem e de hoje. Segundo os especialistas, o coração está mais dilatado do que o normal, pesado, inchado, talvez pesaroso pelos destinos do Brasil. Ou mais do que isso, o coração do Imperador sempre foi pesado e pesaroso. Afinal, nossa independência em relação a Portugal manteve a escravidão, reinventando a mesma como a grande estrutura da sociedade brasileira do século 19.

Digamos que Dom Pedro I e seu coração supostamente romântico bateu forte pelos senhores escravocratas, pelo latifúndio cafeeiro, pelo autoritarismo. O sangue do Brasil era bombeado por um coração mantido pelos corpos da escravidão. De lá pra cá, não foram poucos os momentos em que outros corações também concorreram com o de Pedro. O coração de Getúlio Vargas, explodido num tiro de suicídio, também parou o Brasil, mas dizem que por um motivo muito mais nobre, doar seu coração ao povo brasileiro e seus direitos.

Tempos depois, Dilma, por exemplo, viu o seu coração valente sangrar diante do golpe ardiloso e misógino de Temer e companhia. Lula e sua luta sempre foi teste para cardíacos num Brasil que o condenou mais de uma vez. Hoje, já perto dos 80 anos, Lula sente o coração antirracista de seu governo sangrando. O país da luta de Luís Gama, Laudelina de Campos Mello e Abdias do Nascimento, se vê com o coração despedaçado, dilacerado diante das acusações de assédio sexual contra o agora ex-ministro Silvio de Almeida. Até então um dos intelectuais negros mais respeitados da história de um Brasil estruturado pela racismo.

De muitas maneiras, o coração pesado, inchado e deformado de Dom Pedro é a síntese apodrecida do patriarcado brasileiro. Uma coisa é certa, o culto aos corações do patriarcado e suas veias entupidas está com seus dias contados. Veremos também muitos desses corações no 7 de setembro pelas avenidas do Brasil. Haja formol!

“Coração de dom Pedro 1º em exposição no Palácio do Itamaraty, em Brasília. 2022. Fonte: Gabriela Biló/Folhapress”

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